sexta-feira, 10 de abril de 2009

Como dizia o poeta...

Quem já passou por essa vida e não viveu
Pode ser mais, mas sabe menos do que eu
Porque a vida só se dá pra quem se deu
Pra quem amou, pra quem chorou, pra quem sofreu
Ah, quem nunca curtiu uma paixão nunca vai ter nada, não
Não há mal pior do que a descrença
Mesmo o amor que não compensa é melhor que a solidão
Abre os teus braços, meu irmão, deixa cair
Pra que somar se a gente pode dividir
Eu francamente já não quero nem saber
De quem não vai porque tem medo de sofrer
Ai de quem não rasga o coração, esse não vai ter perdão
Quem nunca curtiu uma paixão, nunca vai ter nada, não!!!

Vinícius de Moraes

sexta-feira, 27 de março de 2009

Agora sim minha avó morre de desgosto...

Dia desses estava caminhando (entende-se vagabundeando) pelas ruas e bairros de Porto Alegre quando vi, em frente a uma igreja, uma faixa – na verdade parecia mais um outdoor – um tanto peculiar: “proibida a entrada de pessoas perfeitas nesta igreja”. Tive naquele momento um resgate de memória. Aos 15 anos, na longínqua década de 1990, quando ainda gozava da gabardice e valentia que apenas os primeiros anos juvenis são capazes de nos proporcionar, criei uma teoria alternativa quanto à integridade de um semelhante: Jesus.
Não vou encher linhas com as precárias idéias de encadeamento genético e perfil psicológico que formulei na época, mas o resultado de tudo foi o questionamento das preferências sexuais de Jesus. Coisa de guri... Como na época estudava em um colégio católico, não preciso comentar a repercussão que teve minha lógica de pensamentos. Herói entre os colegas (a maioria, ao menos) e herege entre os professores, alcancei uma “popularidade” que nunca sonhei. Virei nome de equipe de gincana e até personagem de quadrinhos no jornal escolar. Longe de querer abafar a situação, ainda dei corda na tese. A inscrevi na feira de ciências.
Foi a gota d’água! Após uma apresentação sofrível, meus pais foram “convidados” a comparecer na escola. O pior não foi o mijaço (ou mijasso?) que levei do pai e da mãe (na verdade meu velho até achou graça), mas sim ouvir de um padre tão velho que poderia ser o tutor de Marcelino Champagnat, que é esse o resultado quando se dá conhecimento à qualquer pessoa. Resumo da missa: suspenso por três dias, excomungado e proibido de entrar na capela do colégio.
Hoje, 12 anos mais tarde, novamente sou barrado na frente de uma igreja. Agora sim minha avó morre de desgosto...

quinta-feira, 19 de março de 2009

Sim eu sei, sou um tratante

Sei que estou devendo algumas crônicas (prometi pra muita gente!), mas devem entender que meus dias estão "corridos" por causa da faculdade, dos textos (inúmeros, e cada um com 100 páginas ao menos) e dos livros... Mas garanto que na próxima semana relato uma situação extremamente engraçada que ocorreu comigo.

Abração!!!

segunda-feira, 9 de março de 2009

Mostra expõe dilemas pessoais de Charles Darwin

Chupado da Folha de São Paulo em 09/03/2009

Exposição no Museu de História Natural de Londres celebra os 200 anos de nascimento do naturalista britânico

Entre os destaques, estão amostras coletadas pelo próprio cientista, cartas e anotações feitas durante expedição e pesquisas

SYLVIA COLOMBO
ENVIADA ESPECIAL A LONDRES

"Se você tivesse uma ideia que escandalizaria a sociedade, você a guardaria para si?". Quem pergunta é um imenso cartaz com um Charles Darwin barbudo e envelhecido, fazendo sinal de silêncio com o dedo indicador sobre os lábios.
É ele quem apresenta a exposição "Darwin - Big Idea", em cartaz no Museu de História Natural de Londres até o dia 19 de abril (www.nhm.ac.uk/darwin). Trata-se do principal evento comemorativo do bicentenário do naturalista britânico, que nasceu em 12 de fevereiro de 1809. As celebrações vão até novembro, quando o clássico "A Origem das Espécies" (1859) completa 150 anos.
A mostra apoia-se no dilema moral e religioso que o cientista enfrentou antes de publicar sua polêmica teoria, a de que homens, plantas e animais mudam para adaptar-se às condições do ambiente ao longo dos tempos, por meio de um processo de seleção natural -hoje reconhecida como a mais revolucionária explicação científica sobre a evolução de seres vivos.
Vivendo numa sociedade conservadora, Darwin temeu por cerca de 20 anos divulgar seu achado, pois este desafiaria explicações religiosas sobre a existência humana.

Criminoso?
"É como confessar um crime", resumiu o que sentia em um de seus relatos. Muitos deles, em formato de cartas e anotações, estão dispostos no salão principal da exposição. Chamam a atenção, principalmente, pelo detalhismo de suas observações e pelo rigor metodológico a que se impunha.
Além de elucubrações e certezas, eles revelam também muitas dúvidas. Darwin se diz várias vezes despreparado para explicar certas coisas que via e tinha o anseio de ser auxiliado e iluminado por cientistas mais experientes do que ele.
Uma das principais preocupações da mostra é deixar claro que o processo de elaboração da teoria da evolução foi muito lento. A começar pelo mapa que explica, momento a momento, a viagem do HMS Beagle, expedição de observação da qual Darwin tomou parte e que, por cinco anos, percorreu vários cantos do mundo.
O naturalista ainda era muito jovem na ocasião da viagem -tinha apenas 22 anos-, e, a cada parada, foi fazendo descobertas. Entretanto, foi só depois de muito tempo, já tendo ele voltado para a Inglaterra e matutado muito entre as amostras trazidas, que os pedaços do quebra-cabeças encaixaram-se de forma definitiva.
Algumas dessas amostras, de insetos e de ossos, integram a exibição. Ao lado delas, um recurso interessante, réplicas que o público pode tocar -sucesso absoluto entre as crianças.

Vida pessoal
Durante a expedição, Darwin tentou diminuir a longa distância da família e dos amigos por meio de uma intensa correspondência. Entre as cartas expostas, está uma na qual lamenta que uma moça com quem flertara tinha se casado.
Após o regresso, Darwin uniu-se a uma prima (Emma Wedgwood), mudou-se para Kent e passou a ter uma vida bastante caseira e familiar. Estudava intensamente e escrevia num escritório acolhedor que aparece reproduzido numa das salas do museu londrino.
Além disso, sua atenção voltou-se também à frágil saúde de seus dez filhos e dele mesmo. A morte de Annie, uma das garotas, de apenas dez anos, deixou-o prostrado por muito tempo. Para alguns biógrafos, a tragédia teria sido definitiva para que Darwin deixasse de uma vez de acreditar em Deus.

segunda-feira, 2 de março de 2009

O dia em que os marcianos invadiram a Terra

Há quase 70 anos, uma "pegadinha" de Orson Welles transmitida por uma emissora de rádio, fazia a América tremer de medo.

O Halloween - a "Noite das Bruxas" - chegou um dia antes, em 1938, e de forma inesperada para os americanos, acostumados às inevitáveis brincadeiras do 31 de outubro. Na noite do dia 30, muitos dos seis milhões de ouvintes da rede CBS e suas filiadas levaram a sério o que ouviam pelas ondas do rádio: os marcianos estavam invadindo os Estados Unidos!

De acordo com os relatos da época, quem estava na zona rural correu desesperadamente para a cidade, e cruzou com quem estava na cidade e procurava refúgio no campo.

Os telefones das delegacias de polícia não paravam de tocar e os gritos de socorro ecoavam pelas ruas.

Foi o caso mais célebre de histeria coletiva da História, segundo um estudo publicado pelo professor Hadley Cantril, da Universidade de Princeton.

Os gritos, choros e preces desesperadas deram lugar aos risos e, em boa parte dos casos, às imprecações, quando se soube o que realmente estava acontecendo: tratava-se de uma adaptação radiofônica do livro "A Guerra dos Mundos", de H. G. Wells, feita por Orson Welles para o programa "Mercury Theatre On The Air", que havia estreado no dia 11 de setembro do mesmo ano e ia ao ar das 20 às 21 horas. Em sua tese, o professor Cantril atribuiu a reação popular a três causas: insegurança pessoal, insegurança econômica e insegurança política.

Naqueles tempos, a voz de Hitler já ecoava assustadoramente pela Europa e o rádio era o mais poderoso veículo de comunicação. Roosevelt fazia previsões otimistas em seus discursos, garantindo que o perigo da depressão econômica estava afastado.

O ventríloquo Edgard Bergen, pai da atriz Candice Bergen, fazia sucesso com as piadas contadas através de seu boneco Charlie McCarthy e os ouvintes se deliciavam com os clássicos de Toscanini e dançavam ao som de Benny Goodman.

No Brasil, Dorival Caymmi lançava seu sucesso "O Que é Que a Baiana Tem?" - que também invadiria os Estados Unidos mais tarde, na voz da "alienígena" Carmem Miranda.

A INVASÃO

No começo da transmissão, Welles se apresentara como um certo professor Pierson, "famoso astrônomo do Observatório de Princeton", e declarara pelo rádio, na forma de entrevista, que estava ocorrendo uma série de fenômenos na crosta do planeta Marte. Na verdade, a "entrevista" era tirada do livro "A Guerra dos Mundos", escrito em 1898 por H. G. Wells, mas o tom de seriedade fez com que muitos ouvintes achassem que tudo era verdade.

Na seqüência da transmissão, a emissora informou que um disco voador havia aterrissado numa pequena fazenda em Grovers Mill, Estado de Nova Jersey - perto de Nova York. Logo depois, informava em tom sensacionalista que outros discos teriam pousado em várias partes do país. A transmissão teve direito até ao pronunciamento de um hipotético secretário do Interior, "diretamente de Washington", admitindo a gravidade da situação e pedindo calma aos moradores.

Especialistas no estudo do comportamento humano comentaram em entrevistas aos jornais da época que "os ouvintes estão sempre prontos a acreditar no que uma autoridade oficial diz" e, por isso mesmo, o pânico foi generalizado. Para complicar ainda mais a situação, naquele momento os americanos temiam uma "invasão" de alemães ou chineses.

Depois do episódio, Welles tornou-se uma celebridade mundial e foi contratado por Hollywood para escrever, produzir, dirigir e atuar em filmes nos estúdios da RKO. Os artistas que participaram da famosa adaptação radiofônica foram chamados para integrar o elenco do antológico "Cidadão Kane", considerado um dos mais importantes filmes de todos os tempos.

Entre as inúmeras histórias sobre o trauma causado pela transmissão está a de vários cidadãos que tiveram de ser resgatados seis semanas depois por voluntários da Cruz Vermelha nas montanhas de Dakota, pois eles se recusavam a acreditar que tudo não passara de ficção. E uma ingênua operária mandou a seguinte carta a Orson Welles:"Quando aquelas coisas aconteceram, eu achei que o melhor a fazer era dar no pé. Então, peguei os 3,25 dólares que havia economizado e comprei uma passagem. Após ter viajado 16 milhas, ouvi dizer que era tudo uma peça. Agora estou sem o dinheiro e sem os sapatos que ia comprar com ele. O senhor poderia, por favor, mandar alguém me entregar um par de sapatos pretos, tamanho 9 B?"

SESSENTA MINUTOS DE MEDO

Eram oito horas da noite em Nova York quando o locutor anunciou, naquele 30 de outubro de 1938:

"A Columbia Broadcasting System e as emissoras filiadas apresentam Orson Welles e o Mercury Theatre On The Air, em A Guerra dos Mundos, de H. G. Wells".

Ao fundo, o trecho de um concerto musical de Tchaikovsky.

Volta o locutor:

"Senhoras e senhores: o diretor do Mercury Theatre e o astro deste programa, Orson Welles!"

Welles toma a palavra: "Sabemos que desde os primeiros anos do século XX nosso mundo vem sendo observado meticulosamente por inteligências superiores às do homem, mas tão mortais quanto as dele. Sabemos que, enquanto os seres humanos ocupavam-se dos seus vários problemas, eram estudados tão minuciosamente quanto um homem que, munido de um microscópio, observasse as criaturas minúsculas que pululam e se multiplicam numa gota d'água. Com infinita complacência, o povo andou de um lado para outro sobre a terra, cuidando de seus afazeres, sereno na segurança do domínio que exerce sobre esse pequeno fragmento solar rodopiante que, por sorte ou desígnio, o homem herdou do negro mistério do tempo e do espaço. Entretanto, através do imenso e etéreo abismo, mentes que estão para as nossas, como estas estão para as dos animais selvagens, intelectos vastos mas frios e sem compaixão, contemplavam esta Terra com olhos cobiçosos, e fizeram seus planos contra nós".

O programa é interrompido por um locutor anunciando uma transmissão diretamente do Meridian Room do hotel Park Plaza, de Nova York, onde Ramon Raquello e sua orquestra tocavam "La Cumparsita". Minutos depois, outra interrupção, agora para a informação de que teriam ocorrido misteriosas explosões de gás incandescente no Planeta Marte. O "professor Pierson" começa, então, a dar sua "entrevista" sobre o estranho fenômeno até que o locutor faz novas interrupções para noticiar o aparecimento de discos voadores em diversas partes do país.

"Senhoras e senhores", dizia o locutor, num dos comunicados.

"Tenho uma grave declaração a fazer. Por incrível que pareça tanto as observações da ciência quanto a evidência diante de nossos olhos levam-nos à indiscutível conclusão de que esses estranhos seres que desceram esta noite sobre as fazendas de Nova Jersey são a vanguarda de um exército de invasores vindos do planeta Marte. A batalha em Grovers Mill resultou em uma das mais retumbantes derrotas sofridas por um exército nos tempos modernos. Sete mil homens armados com rifles e metralhadoras enfrentaram uma única máquina invasora de Marte. Apenas 120 sobreviveram. Os outros jazem na área da batalha."

NÃO DEVO OCULTAR A GRAVIDADE DA SITUAÇÃO...

A descrição continua com detalhes assustadores e a situação fica ainda mais tensa com o pronunciamento do "secretário do Interior", diretamente de Washington: "Cidadãos do meu país: não devo ocultar a gravidade da situação que nosso país atravessa, nem a preocupação do seu governo em proteger a vida e as propriedades do seu povo...".

Seguem-se relatos de novas batalhas, até o intervalo, quando o locutor informa: "Estão ouvindo uma apresentação da CBS do Mercury Theatre de Orson Welles, numa dramatização de A Guerra dos Mundos, de H. G. Wells. O programa continuará após um breve intervalo. Aqui fala a Columbia Broadcasting System.."

A esta altura, porém, muitos ouvintes, já em pânico, nem ouviram a informação. A notícia já estava se espalhando. Na segunda parte do programa, o tal "professor Pierson" descreve o clima assustador.

"Alcancei a rua 14 e lá estava novamente o pó preto, vários cadáveres e um cheiro diabólico, pavoroso, exalando dos gradis dos porões de algumas das casas.."

A descrição continua até dar um salto de alguns anos mais tarde, agora com a vida de volta ao normal, as crianças brincando nas ruas, o povo tranqüilo. E Welles termina o programa:

This is Orson Welles, ladies and gentlemen, out of character to assure you that The War of The Worlds has no further significance than as the holiday offering it was intended to be. The Mercury Theatre's own radio version of dressing up in a sheet and jumping out of a bush and saying Boo! Starting now, we couldn't soap all your windows and steal all your garden gates by tomorrow night. . . so we did the best next thing. We annihilated the world before your very ears, and utterly destroyed the C. B. S. You will be relieved, I hope, to learn that we didn't mean it, and that both institutions are still open for business. So goodbye everybody, and remember the terrible lesson you learned tonight. That grinning, glowing, globular invader of your living room is an inhabitant of the pumpkin patch, and if your doorbell rings and nobody's there, that was no Martian. . .it's Hallowe'en.

"Aqui fala Orson Welles, senhoras e senhores, desligado do seu personagem para assegurar-lhes que 'A Guerra dos Mundos' não teve outro objetivo além de oferecer-lhes um bom divertimento para o domingo. Sua versão radiofônica vestiu um lençol branco e saiu de trás de uma moita fazendo um 'buuuu'. Aniquilamos o mundo diante de seus ouvidos e destruímos completamente a CBS. Espero que estejam aliviados por saberem que não tencionávamos isso e que ambas as instituições estão funcionando normalmente. De modo que, adeus a todos e lembrem-se, por favor, pelo dia de amanhã e pelo seguinte, da terrível lição que receberam esta noite. Este sorridente e globular invasor da sua sala de estar é um habitante do país das abóboras. Se baterem à sua porta e não houver ninguém lá, não é nenhum marciano... é Halloween.

domingo, 1 de março de 2009

Depois de outro carnaval, tudo se mantém igual

Da vez primeira em que me assassinaram, perdi um jeito de sorrir que eu tinha.
Depois, a cada vez que me mataram, foram levando qualquer coisa minha...


Mário Quintana

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

A vida nos parques


Há alguns anos li A vida nos Bosques (Walden), de Henry David Thoreau (1817-1862), e não sei por que, uma passagem do livro ficou em minha memória. É mais ou menos assim:


Fui para os bosques porque pretendia viver deliberadamente, defrontar-me apenas com os fatos essenciais da vida, e ver se podia aprender o que tinha a me ensinar, em vez de descobrir à hora da morte que não tinha vivido.


Inspirado em sua obra, e procurando esses tais “fatos essenciais da vida” em solo urbano, acredito que a Redenção seja o caminho a se seguir. É um dos poucos lugares em Porto Alegre onde se pode encontrar tamanha variedade de vida. Há um sortimento de sensações e cheiros que é único e exclusivo da Redenção, afinal onde mais encontraríamos casais passeando em pedalinhos, barracas de pipoca e de sorvete, gatos caminhando calmamente entre as árvores, crianças brincando nos playgrounds, arvores farfalhando sobre as nossas cabeças, um senhor alimentando os pombos no meio da tarde, ou uma poça d’água capaz de refletir as palmeiras e árvores ao redor, ou ainda um abrigo de macacos pichado por ativistas pró-animais?



A contracultura através do mundo

Talvez a primavera de 1955, nos Estados Unidos, não seja apenas o início da Geração Beat, mas a pedra fundamental do inconformismo nos Estados Unidos. Empreendida por Allen Ginsberg, Jack Kerouac, William Burroughs e outros tantos jovens poetas em San Francisco, a Geração Beat deu lastro a todas as principais revoluções culturais norte-americanas: a Geração Hippie, o pop art de Andy Warhol (1968-1987) os punks, o grunge, o rap, etc. A noite de poesias na Six Gallery foi o impulso necessário para que os EUA compreendessem que a pulsação da vida estava além das noites monótonas de ócio na poltrona em frente à TV; o american way of life, baseado na tríade casa, trabalho e responsabilidade, estava com os dias contados.


VAGABUNDOS ILUMINADOS


Com o fim da 2º Guerra Mundial em 1945, os Estados Unidos viveram um período de conformismo. Esgotados com a depressão de 1929 e as carências provocadas pela guerra – mas com a economia em ascensão, a sociedade americana empurrou o temor nuclear para longe adquirindo novos bens de consumo. Televisores, lavadoras de pratos e automóveis rabo-de-peixe, antes presentes apenas em alguns setores da sociedade, facilmente encontraram lugar na classe média. A América vivia a euforia da era Truman (1945-1953) .
Enquanto grande parte da sociedade comemorava o fim da carestia econômica, a principal corrente dissidente do país, o comunismo, foi duramente atacada pelo macarthismo no final da década de 1940. Artistas como os atores e diretores Charlie Chaplin (1889-1977), Orson Welles (1915-1985) e a escritora Dorothy Parker (1893-1967), abertamente declarados comunistas, foram silenciados até a metade da década de 1950, quando as atitudes de McCarthy provocaram sua própria queda. Nesse ambiente de perseguição política e comodismo urbano, nos subúrbios de Nova Iorque surgiam jovens rebeldes que preenchiam o vácuo inconformista: os hipsters . (GOFFMAN; JOY, 2004)
A euforia hipster nasceu da própria ansiedade nuclear que a sociedade tentava enterrar. A possibilidade de uma nova guerra e do apocalipse representava a fuga perfeita das responsabilidades da vida adulta. O hipster era livre para viver o agora. Embora esse imediatismo de emoções aparentasse um aspecto sombrio e desesperado, ela carregava uma sensação de espontaneidade e vivacidade que faltava às rotinas de escritório e ar condicionado. A maioria dos jovens norte-americanos era educada para ser o “bom moço”, exemplo esperado de homem lógico, eficiente e sereno, facilmente moldado às necessidades de seus empregadores. No entanto, eles sentiam-se descontentes. Não havia espaço para o personagem excitável e intenso em sua rotina diária. Assim, a classe média detestava e invejava os hipsters com a mesma intensidade. Em reação a essa corrente, Hollywood produziu filmes como Assim caminha a humanidade (1956, direção de George Stevens) e Êxito fugaz (1950, direção de Michael Curtiz). Desse modo a sociedade produtiva podia ter o estímulo hipster a uma distância segura.
Influenciados pelos sons selvagens e espontâneos do bebop , calcados no Existencialismo francês e sua visão mundana de um espaço vazio cercado por um abismo sem sentido, eram personagens marginais – os rebeldes perfeitos para uma época paranóica. Como não viam esperança de uma mudança positiva, eles mantinham-se à margem da sociedade. O hipster não queria enfrentar a repressão política e tampouco estava interessado em ofender conformistas “caretas e quadrados”. Esses personagens eram existencialistas e inter-raciais (algo pouco comum na sociedade norte-americana das décadas de 1940 e 1950), identificados por algumas poucas características. Boêmios brancos e negros vivendo no limite da economia, indo juntos para clubes de jazz. Ladrões, vagabundos e desleixados circulando por Greenwich Village desenvolvendo suas próprias expressões lingüísticas. Junkies viciados em maconha e heroína que, segundo os próprios, auxiliava a abandonar a mente racional e incitar o bebop. (FRÓES, 1984)
Nesse meio, havia toda uma nova estética em elaboração e a improvisação do jazz indicava um caminho pouco trilhado pela música ocidental. A adoração do espontâneo e do instantâneo, presentes no período pós-guerra anunciavam a revolução criativa prestes a tomar os EUA no final dos anos de 1940. A idéia era simples: partindo de um ponto comum, uma melodia conhecida, os músicos destruíam o andamento da composição. Elaboravam escalas complexas, algumas vezes diatônicas e destoantes, com altos e baixos. Esse gênero musical, o bebop (pode ser considerado um subgênero do jazz), influenciou substancialmente toda a forma literária e poética beat. Criado no final da década de 1930 por jovens músicos negros, ela tomou projeção no Apollo Theater, em Harlem, Nova Iorque. Embora tenha surgido primeiramente em Kansas City, Chicago, quando deságua em Nova Iorque assume um papel mais amplo para os jovens hipsters da cidade: torna-se sua respiração.
O elemento unificador na Geração Beat era, sem dúvida, a musicalidade e sonoridade na literatura. Embora haja certa dificuldade em relacionar algumas obras à Geração Beat, pode-se tomar como instrumento de coesão a prosódia bop, o novo estilo de jazz da época, que influenciou e inspirou as grandes obras dos artistas de vanguarda. Por não haver um trajeto estético a ser seguido, e por não estarem presos à idéia de um movimento literário, existe uma vasta pluralidade na produção deste grupo. A informalidade da literatura beat, assim como a vida de seus escritores, pressupunha a transformação dos conceitos acadêmicos vigentes da época; por fazerem a distinção entre a obra e a vida desses escritores, os críticos não conseguiram entender suas transgressões enquanto obras genuinamente literárias. A experimentação na Geração Beat trazia o rótulo do moderno e vanguardista, desprezava as convenções sociais e exaltava o direito – e dever – de experimentar. A arte só tinha valor enquanto pudessem vivê-la. (WILLER, 1984.)
A sonoridade da literatura beat é fundamental para compreender as idéias de liberdade desses escritores. O bebop impregnava suas vidas, tornava-se essencial; um modo de andar, de falar, enfim, um guia para o processo de criação artística. A experiência da fusão beat e bop, música e poesia em uma única obra foi abordada de inúmeras maneiras pelos beats, assim, eles produziram uma literatura para ser ouvida e declamada, como música, não para ser esquecida em livros dentro de bibliotecas. Preocupados em resgatar o valor da tradição oral, a prática de ler poesia em público teve ascensão nos Estados Unidos na década de 1940. Criaram uma forma de ajustar as palavras à música e vice-versa. Baseando-se na antropologia, que descreve os costumes das comunidades arcaicas, a importância dos cânticos e ritos sagrados como expressões de encantamento e fusão social, os escritores e poetas beats idealizaram eventos com essa mesma função. Fosse em saraus ou manifestações populares (Allen Ginsberg em 1967, por exemplo), a idéia era propiciar o sentimento de integração do ser humano com os outros, consigo e com seus deuses. Acreditavam ser possível libertar a arte e reintegrá-la à vida, expandir suas experiências e transformá-las em fenômenos coletivos. O ritmo era essencial, uma qualidade inerente à fala, ao canto ou ao verso. A questão do ritmo do jazz é fundamental para a compreensão das principais obras beats. Cada frase tem seu ritmo, e essa batida concentra e marca os acentos da linguagem oral, soltos e instáveis. O uso repetitivo do ritmo da fala, seus altos e baixos, demonstra a imensa carga de coesão social aclamada pelos beats. Sua poesia sonora, não catedrática, era destinada aos ouvidos e revela a preocupação em criar obras de elementos rítmicos, palavras sensíveis ao som, assim como música. (SANTOS, 2004)
De fato, as drogas ajudaram tanto os beats quanto os músicos de jazz a criar com maior espontaneidade e menor inibição possível. O acesso direto ao fluxo que percorre os vários níveis de consciência é a chave para a prosa espontânea, a prosódia bop. Ela foi a solução encontrada para a reprodução do ritmo contínuo do jazz em frases e palavras. Entretanto supor que a criação beat surgiu em decorrência das drogas é acreditar na inspiração como uma força externa ao artista. Eles não produziram nada que não saísse de suas mentes. (MORAES, 1984)
Jack Kerouac em 1951, movido por discos de jazz e doses colossais de benzedrina, suando uma camisa após a outra, concebeu a bíblia beat em apenas 18 dias. O livro On the road foi escrito no ritmo de 14 horas e 12 mil palavras por dia, um rolo de telex com 40 metros de comprimento e 175 mil palavras, datilografado com espaçamento simples e sem margens. Percebe-se o cuidado em trabalhar a variação da altura, intensidade, tom/duração e ritmo das palavras. A idéia de Jack Kerouac era escrever como música. Se o saxofone era a extensão do músico, a máquina de escrever era a extensão do próprio corpo.


...linguagem é o fluxo tranqüilo, a partir da mente, de idéias-palavras pessoais secretas, improvisando (como o músico de jazz) sobre o tema da imagem (...) Nenhuma pontuação separando sentenças-estruturas já arbitrariamente difíceis por falsos dois pontos e vírgulas geralmente desnecessárias – mas o vigoroso traço separando a respiração retórica (como o músico de jazz tomando fôlego entre duas frases) – pausas marcadas que são a essência da nossa fala (...) Improvise tão fundo quanto quiser – escreva tão profundamente, procure tão longe quanto quiser, satisfaça a si mesmo primeiro e então o leitor não poderá deixar de receber o choque telepático e o significado-excitação pelas mesmas leis operando em sua mente. (KEROUAC – apud MUGGIATI, 1984, p. 75)


O jazz não atuou apenas sobre Kerouac. Allen Ginsberg usou o ritmo sincopado do bop em seus poemas, como o livro O Uivo (1956), por exemplo. Percebe-se claramente a relação entre o andamento de seus versos e o ritmo do bebop. Gregory Corso, outro poeta beat, afirmava que escrevia como Charlie Parker (1930-1955) e Miles Davis (1926-1991) tocavam. Escreveu no ritmo linear da fala, com versos livres e espontâneos. Era a emoção sobre a frieza acadêmica, os poetas escreviam motivados pela música, alienados de toda a sanidade ou racionalismo que operassem como censor das palavras ritmadas. A reinvenção da linguagem pelos beats é uma criação artística que se valeu do ritmo prosaico emaranhado na forma do jazz. A Geração Beat transformou a literatura americana, a atualizou em sintonia com a música e a fala do seu tempo. A literatura beat é um coquetel de drogas, entre as quais a vida é a mais perigosa. Ela começa no momento em que esses garotos, brancos e de classe média e alta, egressos de universidades e pouco dispostos a encarar o mercado de trabalho e a vida burocrática descobrem a América negra, o bebop de Charlie Parker e Billie Holiday (1915-1959), a América pobre dos cucarachas apanhadores de algodão. A América de jeans e sapatos pra caminhar. A América dos dias puros e inocentes, nem úteis, nem inúteis. O projeto beat era tirar das sombras o mundo dos sentidos, das emoções e dos desejos, das vontades e das paixões. Os beats queriam fundir vida e texto, literatura, benzedrina e uísque. Queriam acabar com a imagem do escritor em seu escritório, datilografando sobre uma vida emprestada e aventuras que não viveu. A idéia era escrever drogado, e que a memória e o inconsciente falassem com toda energia e liberdade. Uma escrita destoante dos códigos literários de praxe. Sexo, drogas e jazz. Alegria e fúria, altos e baixos no correr da vida. A narrativa beat é feita de registros vivos, de porres e viagens de heroína e benzedrina, filosofia e sociologia. (MORAES, 1984)
A maioria dos hipsters, com exceção dos músicos de jazz, não ligava para arte ou literatura. Entretanto, havia um pequeno círculo à margem da vida hipster que formava uma aliança de literários. Boêmios entregues ao excesso do álcool, esses escritores começaram a tomar forma em 1943, na Universidade de Columbia. Neste ambiente transitavam nas estradas, ruas e bares, três amigos: Jack Kerouac, Allen Ginsberg, e William Burroughs. Allen Ginsberg (1926-1997), judeu e homossexual, havia acabado de entrar na universidade para cursar Direito. Seu interesse por literatura, porém, o fazia buscar disciplinas de letras, escrevia sobre a loucura e sobre a bomba atômica. William Burroughs (1914-1997) falava do submundo das drogas e do homossexualismo, era o mais velho de todos. Vindo de família muito rica, o rapaz pôde estudar na Harvard onde se formou em Medicina, embora jamais tenha se adaptado socialmente. Jack Kerouac (1922-1969), ao contrário de William Burroughs, veio de uma família de classe média baixa de Lowell, Canadá, e conseguiu entrar na universidade graças a uma bolsa como jogador de futebol americano. Jack Kerouac se destacava pela produção de uma nova estética literária, ligada à fluidez da mente. O encontro dos três se deu de um modo peculiar: em dezembro de 1943, Lucien Carr (1925-2005), um jovem pintor originário de Saint-Louis, Missouri, é apresentado a Jack Kerouac, por intermédio de Edie Frank Parker (1922-1993), namorada de Jack na época. Imediatamente uma cumplicidade amistosa nasce entre os dois. Não se separam, inspiram-se, parecem dois colegiais. O papel de Lucien Carr é maior que simplesmente distrair Jack Kerouac. Às vésperas do natal de 1943, Lucien conhece Allen Ginsberg em um seminário teológico na 120th Street onde, no sétimo andar do prédio, cada um ocupa um quarto de estudante. Allen Ginsberg, ao ouvir o Trio nº. 1 de Brahms bateu na porta de Lucien Carr, de onde provinha a música. Lucien lhe fala de Jack Kerouac, e em maio de 1944, Ginsberg se apresenta em pessoa no apartamento de Jack, com a intenção de conhecer o poeta. Em poucos dias, Jack e Ginsberg tornam-se amigos, e realizam intermináveis passeios-conversas, nos quais fica mais do que evidente que eles têm muito em comum. (BUIN, 2007)
Em uma discussão abstrata os jovens Jack Kerouac e Allen Ginsberg entram em um discurso mais pessoal. Enquanto Ginsberg explicava como se sentava à sombra dos muros na Graham Avenue e vagava sobre a imensidão do universo, Kerouac contou como ficava no quintal de casa à noite quando todos jantavam e sentia que todos eram fantasmas comendo comida de fantasmas. Alguns dias depois eles se reuniram na casa de William Burroughs, amigo de Lucien Carr, e enquanto Kerouac e Ginsberg tinham outra conversa abstrata, agora sobre arte, Burroughs os interrompeu: “essa é a conversa mais estúpida que eu já ouvi”. Os delinqüentes haviam encontrado seu mestre. O início da Geração Beat estava formado. Muitos outros jovens escritores e interessados em arte se juntaram a este grupo inicial, porém Ginsberg, Burroughs e Kerouac são, sem dúvida, os três maiores escritores da Geração Beat. Entre os vários poetas e literários beats, pode-se destacar Gregory Corso (1930-2001), William Carlo Williams (1883-1962), John Clellon Holmes (1926-1988), Neal Cassady (1926-1968) e Lawrence Ferlinghetti (1919- ), todos presentes na Six Gallery em 1955. (GOFFMAN; JOY, 2004.)
A Six Gallery era uma pequena galeria em uma antiga loja em San Francisco, EUA, onde o poeta Kenneth Rexroth (1905-1982) organizou um evento para apresentar alguns dos seus jovens amigos em uma leitura conjunta, e cinco promissores poetas foram selecionados. Não há coesão quanto a data deste evento. Alguns historiadores e poetas dizem que ocorreu no dia 7 de outubro de 1955, embora a data seja por vezes citada como 13 de outubro, ou até mesmo colocada em dezembro de 1955. Cerca de 150 pessoas estavam na platéia, inclusive Jack Kerouac, que havia sido convidado a ler, mas preferiu recolher dinheiro entre os convidados para comprar três garrafões de vinho. Na noite da leitura, a galeria foi decorada com esculturas surrealistas, construídas a partir de grades de madeira e gesso de Paris.
Philip Lamantia (1927-2005) foi o primeiro. Leu uma série de poemas de seu amigo John Hoffman, que há pouco tempo havia morrido por overdose de peyote. Em seguida, Michael McClure (1932- ) leu Point Lobos: Animism e the Death of 100 Whales. O terceiro poeta, Philip Whalen (1923-2002) leu Plus Ca Change. Allen Ginsberg foi o quarto e roubou o show. Tinha vinte e nove anos de idade e ainda não havia publicado qualquer poesia, ou participado de algum sarau. Ele tinha escrito O Uivo num louco frenesi apenas algumas semanas antes, por isso ainda ninguém conhecia este revolucionário trabalho de longas linhas ininterruptas, como um verso bíblico proclamando gloriosa desconfiança diante do isolamento. A multidão ficou em transe, e Jack Kerouac, agora sentado à beira do palco, começou a gritar GO! GO! até ao final do poema (apenas a primeira parte, o resto ainda não havia sido escrita), Kenneth Rexroth estava em lágrimas e Allen Ginsberg tinha lançado a sua carreira como poeta. O último poeta, Gary Snyder (1930- ) precisou esperar que a multidão se acalmasse antes de ler o poema A Berry Fest. Na manhã seguinte, a repercussão do sarau no Six Gallery foi extraordinária e os cinco poetas se tornaram localmente famosos. O processo de leituras se repetiu inúmeras vezes durante os meses seguintes, com públicos cada vez maiores.
A importância dessa primeira leitura no Six Gallery é a consolidação da poesia em San Francisco, e transformação de vários dos jovens poetas, especialmente Allen Ginsberg, em celebridades instantâneas.


Eu vi os expoentes de minha geração destruídos pela loucura, morrendo de fome, histéricos, nus,
arrastando-se pelas ruas do bairro negro da madrugada em busca de uma dose violenta de qualquer coisa,
“hipsters” com cabeça de anjo ansiando pelo antigo contato celestial com o dínamo estrelado da maquinaria da noite,
que pobres, esfarrapados e olheiras fundas, viajaram fumando sentados na sobrenatural escuridão dos miseráveis apartamentos sem água quente, flutuando sobre os tetos das cidades, contemplando o jazz,
que desnudaram seus cérebros ao céu sob o Elevado e viram anjos maometanos cambaleando iluminados nos telhados das casas de cômodos,
que passaram pelas universidades com os olhos frios e radiantes alucinando Arkansas e tragédias à luz de William Blake entre os estudiosos da guerra,
que foram expulsos das universidades por serem loucos e publicarem odes obscenas nas janelas do crânio,
que se refugiaram em quartos de paredes de pintura descascada em roupa de baixo queimado seu dinheiro em cestas de papel, escutando o Terror através da parede,
que foram detidos em suas barbas púbicas voltando por Laredo com um cinturão de marijuana para Nova Iorque


Dizimados pelas drogas, pelo álcool e desespero, eles se impõem pela sinceridade da confissão. Fantasias dantescas e memórias íntimas se unem em suas obras, menos preocupados com as formas literárias e mais com a pulsação vital do que escrevem. Altos e baixos, assim como o bebop. Não são profissionais do texto, são marginais, vagabundos e desorganizados. Bebem com avidez, entregam-se a toda sorte de vícios. São poetas da existência.
Outro importante pilar da Geração Beat foi a tradição Zen Budista. O budismo americano nasceu com esses poetas que pegavam carona ou se refugiavam no mato – Gary Snyder, Jack Green, Dan Propper, Kerouac, Corso, Ginsberg – para sentir que o que chamamos de vida, longe das convenções, perto do céu, é infinitamente maior que a dimensão da gente. (FRÓES, 1984)
De fato, desde o início do século XX o Ocidente vinha se abrindo para a cultura oriental. Inicialmente, em uma busca do exótico que apresentava uma imagem quase caricata, depois com um crescente interesse místico, nascido da frustração diante dos valores judaicos e cristãos. Assim, quando a Geração Beat surgiu, o Zen já estava presente, e a tal ponto que logo se tornaria moda. Jack Kerouac foi o que mais ajudou a difundir a cultura budista. Não o verdadeiro Zen, mas um aspecto muito pessoal do Zen, cheio de misticismo católico. Ele o descobriu por acaso, quando Allen Ginsberg, estudando pintura chinesa encontrou ensaios de D. T. Suzuki e os mostrou a Jack Kerouac. Interessado, Kerouac passava as tardes em bibliotecas, e por força do seu catolicismo, se voltou para o ramo mais conservador do budismo, o Mahayana, usando como lema a primeira verdade de Sakyamuni (Buda Sakyamuni, a quem o budismo foi revelado em 500 a.C.): “Toda vida é sofrimento”. O próprio Kerouac dizia ser um budista sério, e sua maior queixa é que o Zen se concentra menos na bondade do que em confundir o intelecto para fazê-lo perceber que todas as coisas são ilusões. (MUGGIATI, 1984)
A busca dos beats pela iluminação espiritual caminha ao lado de uma paixão mais terrena: a revolução das mochilas. Em sua peregrinação, os beats buscavam a visão da América ao longo de caminhos, estradas e trilhas. Garotos inquietos, intelectuais avessos aos escritórios e gabinetes, com “toda aquela terra crua e rude se esparramando numa única, inacreditável e elevada vastidão até a costa Oeste, e toda aquela estrada seguindo em frente, e todas as pessoas sonhando nessa imensidão enquanto a estrela do entardecer vai caindo e irradiando sua pálida cintilância sobre a pradaria”. (BUENO, 1984)
Os beats buscaram em viagens através da América a resposta para as suas inquietações e dilemas. É fácil imaginar Jack Kerouac como um anjo caído – ele auto entitula-se um bikkhu, um monge budista errante – vagando de Nova Iorque à San Francisco, da Califórnia ao México motivado apenas pela possibilidade de descobrir a verdadeira América. A América das plantações de algodão e de uvas, a América dos sonhos. Gary Snyder é o amigo que incentiva Jack; o incita a procurar a revelação espiritual. Por sua vez, Jack vêm e Gary a imagem de um Buda jovem e vigoroso. Em compensação, Gary apontará Jack como bodisatva, o ser de compaixão e de amor. (BUIN, 2007)
Em 1956 Allen Ginsberg, Jack Kerouac e Gary Snyder realizam uma excursão ao monte Matterhorn, na Califórnia, onde gary pronunciou uma frase profética, muitas vezes repetidas mais tarde:


Tenho a visão de um grande revolução de mochilas, milhares ou até mesmo milhões de jovens americanos vagando por aí com mochilas nas costas, subindo montanhas para rezar, fazendo as crianças rirem e deixando os velhos contentes, deixando as meninas alegres e moças ainda mais alegres, todos esses zen-lunáticos que ficam aí escrevendo poemas que aparecem nas cabeças deles sem razão nenhuma.


Jack, entretanto, não foi o mais estradeiro dos beats. Embora tenha empreendido, entre 1947 e 1950, a rota Nova Iorque – San Francisco – Cidade do México, com constantes paradas em Denver, Colorado, não foram muitas as suas aventuras nas estradas. Neal Cassady, filho de “um dos bêbados mais trôpegos da Larimer Street, Denver”, era, segundo Jack, “o cara perfeito para a estrada, já que nasceu na estrada quando seus pais estavam passando por Salt Lake City, em 1926, num calhambeque caindo aos pedaços”. Em suas viagens relatadas no livro On the road, Jack põe Neal como instigador de suas andanças. A primeira viagem de Jack , é para encontrar Neal, em Denver. De fato Neal será o iniciador de vida para Jack. Ele o dirá como agarrá-la, suscitá-la e degustá-la.
Na verdade, Allen Ginsberg figura entre os beats mais inquietos. Sua vida e obra estão repletas de visões a estrada, seus diários narram passagens por todos os continentes do mundo. Haxixe no Marrocos, ópio na Índia, peyote no México, yage no Peru, ácido na Grã-Bretanha e maconha em qualquer lugar. Viajar drogado, ou para experimentar novas drogas também era uma predileção de Willian Burroughs. Embora não se possa chamar-lo de andarilho, Burroughs passou boa parte de seus jovens anos perambulando o mundo, e se sacrificando apenas para experimentar novas drogas. (BUENO, 1984)
Quando os livros dos escritores beats foram lançados na segunda metade da década de 1950, nos Estados Unidos, seus autores encontraram em setores consideráveis da sociedade americana um público hostil. Foram classificados como subliteratura, seus poemas censurados e extremamente criticados nos principais jornais americanos. (ALMEIDA, 2006)
A dúvida quanto à contribuição literária da Geração Beat persiste mesmo 50 anos após seu nascimento. Fenômeno comportamental, ou literário? Conforme Cláudio Willer, autor de Beat e a Tradição Romântica, de 1984, trata-se de uma falsa questão. Ela consiste na divisão entre arte e vida, e é exatamente a divisão que Allen Ginsberg, Lawrence Ferlinghetti, Jack Kerouac, William Burroughs e Gregory Corso tentaram ultrapassar. Encontramos, em suas obras, textos sobre o que eles estavam vivendo. Suas vidas foram coerentes com suas idéias, suas visões de mundo e suas concepções literárias. A crítica acadêmica e conservadora não compreendia como, apesar da admissão explícita de uso de drogas, do homossexualismo, das transgressões de comportamento, a errância aventuresca, a prosódia baseada na fala popular e o antiacademismo, tivessem dado certo. Conciliaram o maldito e o olímpico, produzindo imediatamente uma massiva influência literária e comportamental. É sob este aspecto que a Geração Beat se constitui de um fato inteiramente novo na evolução da literatura. Conforme Alain Jouffroy (1926-) destaca, em seu prefácio para a primeira antologia francesa da Geração Beat, nunca havia ocorrido algo assim: autores novos, em suas primeiras publicações, atingirem tiragens enormes. (WILLER, 1984)
Soa estranho, dentro da tradição literária americana, a preocupação com o comportamento e a crítica moralista. Escritores marginais, boêmios, e pouco usuais, como F. Scott Fitzgerald, Jack London e Ernest Hemingway, foram inovadores literários, e também deixaram ricas biografias que se somam a suas obras. No entanto, não há movimentos organizados de vanguarda na primeira metade do século XX, nos Estados Unidos. Enquanto na Europa surgiu o Futurismo, na Itália e na Rússia, o Dadaísmo e o Surrealismo, nos Estados Unidos não houve nada semelhante. Talvez o que possa chegar mais perto é o Imagismo de Ezra Pound e Amy Lowell, mas se comparadas aos demais movimentos da época, fica claro e definido o seu caráter conservador e tradicionalista. Até os anos 50, a literatura americana é uma literatura de indivíduos, não de movimentos. Outra característica é o lugar da universidade na vida cultural dos EUA. Ela tinha um peso imenso não só como instituição de ensino e pesquisa, mas também de produção cultural.
É dentro desse quadro que a Geração Beat inicia um rompimento com a cultura de massa. O impacto e ascensão dos beats podem ser explicados pelo atraso norte-americano na questão de movimentos vanguardistas, e pela presença marcante de um modelo literário conservador. É desnecessário lembrar que a Geração Beat nasce em paralelo ao macarthismo e à perseguição de intelectuais por motivos ideológicos. (WILLER, 1984)
No final da década de 1950, o debate em torno da Geração Beat, nos Estados Unidos, era profundamente polêmico. A discussão misturava a emergente cultura juvenil com o debate literário. Entre 1957 e 1958 os questionamentos acerca da Geração Beat girava principalmente no significado do termo beat, e quem participava dela. Quem cunhou a expressão foi John Clellon Holmes, em 16 de novembro de 1952 ao publicar um texto intitulado “This is the Beat Generation”, no New York Times.
Ao escrever o artigo, Holmes não está definindo apenas uma parcela da juventude, muito menos anunciando uma vanguarda literária. Sua intenção é maior. A Geração Beat incluiria não apenas o hipster, que ouvia jazz e vivia em um submundo com clara característica Existencialista negando o American Way of Life, mas inclusive o jovem que estava conformado com seu papel de “engrenagem em uma grande corporação”. Seria uma geração de extremos. Conforme o próprio Holmes em seu artigo, a origem da palavra beat é obscura, mas seu significado claro.


Muito além de cansaço, implica o sentimento de ter sido usado, de estar desgastado. Envolve uma pureza de mente, e finalmente da alma; um sentimento de ser reduzido aos fundamentos da consciência. Resumindo, significa ser facilmente forçado à sua própria essência. Um homem é beat quando ele vai falido arriscar todos os seus recursos em um só número; e a geração de jovens tem feito isso continuamente desde cedo. (HOLMES – apud ALMEIDA, 2006, p. 06)


Desse modo, o termo beat é constituído de duplo sentido, onde ao mesmo tempo em que implica ser objeto passivo de uma ação danificadora, o termo também demonstra a capacidade de acreditar em algo. Mesmo que o homem beat tenha sido usado, e reduzido aos fundamentos da própria alma, ainda tem a capacidade de apostar todos os seus recursos em um só número.
Para o jazz, o termo beat tem o significado negativo de se sentir abatido, mas também está ligado à batida instrumental. Holmes se apropria adequadamente do termo para seu discurso sobre os jovens. Pois o que une esses jovens como uma geração, o que fazem deles beats, é também o duplo movimento de não apenas considerar o sistema de valores da sociedade americana, mas de buscar seus próprios valores e seus próprios ideais. O conceito de Geração Beat nasce antes como um “espírito do tempo”, o sentimento dos jovens que questionam os valores da sociedade americana, do que como movimento literário. No entanto Jack Kerouac, no artigo Origins of the Beat Generation, de 1959, nega seu sentido transformador através de busca de ideais, como prega John Clellon Holmes. Jack enfatiza o seu sentido religioso, e que beat é o radical que compõe beatitude e beatífico. (ALMEIDA, 2006)


Originalmente a palavra beat significa pobre, derrotado, endividado, triste, dormindo nos metrôs. Agora a palavra existe oficialmente, ela está se expandindo para incluir pessoas que não dormem nos metrôs, mas possuem um gesticular novo, ou atitude, que eu só consigo descrever com um novo costume. Geração Beat simplesmente se o tornou slogan ou rótulo para a revolução dos modos da América.


Beat significa beatitude, e não um sentimento de fracasso. Jack kerouac inclui a Geração Beat, qualquer pessoa entre 15 e 55 anos que se interessa por tudo. Não são apenas boêmios, a Geração Beat é basicamente uma geração religiosa. (KEROUAC, 1958)



FLOWER POWER


Existe uma linearidade em todas as revoluções culturais. Assim como a Geração Beat procedeu à Geração Perdida, da década de 1920, a Geração Hippie é o caminho natural dos Beats. Os hippies não apenas sofreram influência dos beats, mas apropriaram-se de sua religião e seu amor pela vida, o gosto pela viagem e o desapego ao American Way of Life, além do sentimento de desolação, por causa da guerra do Vietnã. Nesse momento o temor da II Guerra Mundial (1939-1945) não mais persiste, mas o medo da Guerra Fria, onde a insanidade de poucos políticos poderia pôr fim ao mundo com suas bombas nucleares, e a Guerra do Vietnã (1959-1975) está vivo no imaginário dos jovens. Oriundos da classe média americana, os hippies eram os filhos mimados de uma sociedade ascendente. Enquanto nos anos 50 as pessoas partiam atrás de novas informações, nos anos 60 uma imensa onda de novas idéias foi aclamada pelos meios de comunicação. Computadores, implantes mecânicos, transplantes de órgãos e tecnologia espacial coexistiam pacificamente com o retorno das ciências ocultistas, a astronomia, as artes divinatórias, a bruxaria e as religiões orientais. Deixe as máquinas e os computadores fazerem o trabalho pesado e vamos viver de amor, eles diziam. Iniciava-se a Era das Viagens. Em busca de drogas artificiais, e do nirvana prometido pelos gurus, toda uma geração caiu na estrada. Não mais em vagões de trens, ou em caçambas de caminhões, como na Geração Beat, mas em vôos ou em navios com destino à Índia e ao Katmandu, no Nepal. Nascia o Zen instantâneo, que era distribuído em forma de pó, ou em pílulas. (MUGGIATI, 1984)
O inconformismo e a busca individual de uma identidade se transformaram em um movimento de massas. Drogas e rebelião eram tudo o que o jovem queria. Contradições eram devidamente identificadas, e novas formas de conformismo foram produzidas. As pessoas sentiam que estava à mão uma grande libertação, para o indivíduo e para a sociedade. Alguns beats, como Allen Ginsberg e Neal Cassady também embarcaram nos novos tempos. Ginsberg trocou a filosofia Zen dos anos 50 pelo misticismo indiano, e Cassady foi motorista do ônibus dos Merry Pranksters, até ser encontrado morto, em 1968 à margem de uma ferrovia no México. Novas filosofias foram concebidas, os sistemas de crenças e as mentes das pessoas foram expandidas. Manifestantes foram alvos de tiros, e extremistas políticos levaram seus movimentos ao suicídio.
A década de 1960 inicia com a mudança na presidência dos Estados Unidos, quando John F. Kennedy (1917-1963) substitui o general Eisenhower (1890-1969). O carisma de Kennedy, sua dinâmica e aparência jovial, além de sua amizade com artistas undergrounds e boêmios contribuíram para criar a sensação de que ele era um pouco hipster. Kennedy era uma espécie de presidente sexo-e-drogas. Enquanto suas aventuras sexuais eram conhecidas publicamente, sua história com drogas é mais misteriosa. Injeções de metanfetamina e B12 aplicadas por Max Jacobson, o Dr. Feelgood, e maconha na Casa Branca com Mary Pinchot Meyer (1920-1964) demonstram que o presidente Kennedy era um homem de estado alterado. Sintonizado com a nascente geração de jovens idealistas, Kennedy era partidário ao movimento pelos direitos civis. Um pouco antes de seu assassinato em 1963, Kennedy mudou sua postura de confronto com a união Soviética. Defendeu o desarmamento e a negociação; também chegou a sugerir, em um discurso de junho de 1963 que: “Se não podemos dar um fim a nossas diferenças, pelo menos podemos ajudar a fazer do mundo um lugar seguro para a diversidade. Pois, em última instância, nossa semelhança mais básica é que todos habitamos esse pequeno planeta. Todos respiramos esse mesmo ar. Todos acalentamos o futuro de nossas crianças. E todos somos mortais”. (KENNEDY, apud GOFFMAN; JOY, 2007, p. 274)
Enquanto a imagem de Kennedy animava os primeiros anos da década de 1960, dois outros acontecimentos representaram o verdadeiro início de uma revolução contracultural: uma nova política de esquerda pós-comunista, adotada pelos jovens, e as experiências com drogas psicoativas.
Nos anos 1960, muitos ex-marxistas se filiaram ao liberalismo anticomunista, e com a eleição de Kennedy, eles estavam perto do poder real. Mesmo que elementos mais conservadores estivessem nos escalões mais altos do governo, muitos liberais tinham posições inferiores, e programas contra a pobreza, maior apoio federal aos direitos civis de afro-descendentes e até mesmo acordos de desarmamento nuclear, estavam na mesa. Em 1960, uma organização universitária de esquerda grupo sustentado pela sindical League for Industrial Democracy, mudou seu nome de Student League for Industrial Democracy para Students for a Democracy Society. Uma nova geração estava assumindo o controle da organização. A mudança do nome foi uma afirmação de independência, eles na sentiam culpa ou desilusão por Stalin , aquela era a história de seus pais. Quando crianças, eles haviam passado pelo macarthismo, mas afinal, eles eram crianças. Seus temores eram muito mais marcados pela presença das bombas atômicas e de hidrogênio do que pela perseguição política dos anos 1940 e 1950. E em algum lugar dos anos 1950, estavam os beats, viajando e fazendo sexo enquanto seus pais trabalhavam das nove às cinco.
Universitários da época estavam mergulhados em tendências filosóficas existencialistas. Sua mensagem era que um indivíduo é responsável por sua própria vida, nem a sociedade, nem o governo farão alguma coisa por você, e é melhor aproveitá-la agora, pois depois não há mais nada. É válido lembrar que os membros dessa nova esquerda eram majoritariamente brancos, e escolheram a luta pelos direitos civis como forma de expressar seu compromisso existencialista, e desse modo se alinhavam com outros grupos, como o Congresso de Igualdade Racial e o Comitê de Coordenação Não-Violenta Estudantil. Ir de carro ou de ônibus para o Sul dos Estados Unidos para desafiar a segregação racial era sem dúvida a experiência de vida autêntica do período.
De volta às universidades, os estudantes radicais estavam se identificando com o clima de revolta e com a liberdade sexual. Foram adotados algumas características beats, seus cabelos eram um pouco mais compridos que os dos outros, e em alguns lugares os baseados de maconha se tornaram parte dos hábitos da esquerda.
Em 1962, a mando da CIA , a Universidade de Harvard demitiu Richard Alpert (1931-) e Timothy Leary (1920-1996), dando involuntariamente publicidade e uma aura de rebeldia às drogas psicoativas e aos ex-professores, despertando assim um interesse em estudantes universitários de todo os Estados Unidos. Aos 39 anos, em 1960, o professor universitário Timothy Leary tirou férias com a família e amigos no México, e seguindo o conselho de um colega, experimentou alguns cogumelos psilicibianos . O resultado o deixou impressionado, e mais tarde escreveu sobre a experiência: “Foi (...) sem dúvida alguma a maior experiência religiosa da minha vida. Eu descobri a beleza, a revelação, a sensualidade, a história celular do passado, Deus e o diabo – tudo estava dentro do meu corpo, do lado de fora da minha mente”. (LEARY, apud GOFFMAN; JOY, 2007, p. 275)
Naquele mesmo ano, Leary retornou a Harvard determinado a conduzir experiências sobre o potencial psicoterapêutico da substância psilocibina, e criou um projeto de pesquisa, conseguindo um suprimento legalizado de comprimidos de psilocibina sintética. Muitos colegas facilitaram o seu trabalho com pesquisas já realizadas com drogas psicodélicas, e escritos de intelectuais que a experimentaram, como psicólogo e filósofo William James (1842-1910) e o escritor Aldous Huxley (1894-1963) . (GOFFMAN; JOY, 2007)
Antes de Leary, porém, inúmeros cientistas, terapeutas e espiões da CIA haviam feito experiências com alguns compostos psicoativos, ao longo da década de 1950, com objetivos distintos. Alguns pesquisadores acreditavam que as drogas criavam uma psicose temporária, o que lhes dava a oportunidade de estudar esses estados patológicos. Outro grupo de cientistas compreendiam que as drogas poderiam produzir uma experiência positiva e espiritual, com resultados terapêuticos. Já a CIA, pensava que as drogas podiam ser usadas para vários objetivos defensivos, como o interrogatório de prisioneiros e a incapacitação de tropas inimigas e populações civis. No entanto eles chegaram à conclusão que os efeitos das drogas eram imprevisíveis demais para serem úteis. (CARVALHO, 2002)
Um dos beats que se ofereceu de cobaia para o projeto de Leary em Harvard, foi Allen Ginsberg. Embora já houvesse se drogado mescalina , peyote e LSD , a experiência dirigida pelo professor Leary foi uma espécie de “visão messiânica” para Ginsberg. Estimulado pela psilocibina, Allen Ginsberg levantou o dedo no ar e sacudiu: “Eu sou o Messias”. O entusiasmo de Ginsberg em converter as pessoas à sabedoria que havia encontrado na substância, despertou no Dr. Leary um entusiasmo sem precedentes no mundo ocidental. Ginsberg barbudo, pederasta e judeu, um poeta beat, e o Dr. Leary sobriamente vestido, hétero e adepto de padrões de comportamento humano “normais”, fizeram um pacto para mudar o mundo. Seu plano inicial era conduzir importantes escritores, artistas e músicos à experimentação da psilocibina, e estes, supostamente, deveriam se entusiasmar e espalhar a notícia. Os resultados, no entanto foram decepcionantes. Grande parte dos intelectuais e artistas que experimentaram a droga a consideraram uma experiência válida, mas eles eram céticos quanto aos seus efeitos e às suas perspectivas. Alguns gostaram um pouco da droga, outros detestaram. Alguns gostaram muito, mas ninguém se juntou à cruzada. (GOFFMAN; JOY, 2007).
Leary continuou seu projeto. Além de suas experiências com a psilocibina, Harvard era um centro de pesquisas de alucinógenos da CIA, e logo ela decidiu “banir” o Dr. Leary e o Dr. Alpert do quadro docente da universidade. Em uma reunião pública, a administração de Harvard pos o projeto da psilocibina sob séria vigilância. Passaram-se poucos meses para que Harvard encontra-se desculpas para demitir Leary e Alpert. Com publicidade gratuita, os ex-professores podiam falar à vontade sobre sua pesquisa, o que eles fizeram com certa dose de inteligência e irresponsável naturalidade. Nesse momento eles tinham um inimigo, as instituições detentoras do poder nos EUA. (GOFFMAN; JOY, 2007).
Enquanto as idéias militaristas da Guerra Fria mantinham-se firmes no subconsciente de grande parte dos americanos no início da década de 1960, as soturnas tendências contraculturais antiautoritárias deixadas pela década de 1950 começaram a caminha por um caminho mais alegre e absurdo. Na pintura, o expressionismo abstrato deu lugar à um comportamento tresloucado, mais elegante e irônico. E Bob Dylan, brilhante autor de canções de protesto, se comportava como um irritante adolescente, atacando repórteres e outros adultos por serem sérios demais. A revolução cultural que tinha começado nos anos 1950 continuava o seu caminho, ganhando confiança e força. O jazz, antes aclamado como essencial, nesse ponto dá lugar ao rock e ao espírito rebelde de Elvis Presley (1935-1977), Jerry Lee Lewis (1935 -), Chuck Berry (1926 -), Little Richard (1932 -) e Fats Domino (1928 -). Na Inglaterra alguns rapazes, na sua maioria oriunda das classes operárias, estavam vivendo nos escombros de uma sociedade decadente, com forte distinção de classes. Consolados pelos antigos compactos de rock americano, os garotos ingleses desenvolveram não só uma música própria, mas também um estilo distinto do resto da Europa. Foi nesse ambiente que no final da década de 1950 surgiram os Beatles e Rolling Stones, os primeiros com um rock frívolo, os segundos com uma espécie de rock enérgico. Em 1964, quando os Beatles estouram nos Estados Unidos, a população adulta parou de se preocupar com os comunistas e passou a temer o cabelo. No decorrer dos anos seguintes, as letras e a música evoluíram num ritmo extraordinário. Ken Kesey (1935-2001) e seus Merry Pranksters certamente foram os primeiros. Em 1964 ele encheu de amigos e de LSD um ônibus com pinturas psicodélicas e saiu pelos Estados Unidos para drogar as pessoas e ver como elas se portavam. Esses novos hipsters estavam falando de amor, comunhão e êxtase. Essa mistura de idéias foi acelerada pela recém despertada consciência-psicodélica, auxiliada sobretudo à grande produção de LSD. No seu encalço, Chet Helms (1942-2005) e Janis Joplin (1943-1970) criaram a casa de rock Family Dog. Em agosto de 1969, o festival de Woodstock foi realizado em uma fazenda em Bethel, Nova Iorque. Embora tenha sido projetado para 50 000 pessoas, mais de 400 mil compareceram, a maioria das quais não pagaram o ingresso. Participaram do evento artista ligados a diversos estilos musicais que de alguma forma se relacionavam com as propostas do movimento hippie: o folk, com seu pacifismo e sua contundente crítica social, o rock, com sua contestação ao conservadorismo dos valores tradicionais, o blues, com sua melancolia que havia décadas já mostrava as contradições da sociedade norte-americana, a cítara de Ravi Shankar, representando a presença marcante da influência oriental na contracultura, entre outros.
Todo o evento provocou uma grande balbúrdia, com rodovias congestionadas e Bethel sendo ocasionalmente considerada "área de calamidade pública". Grateful Dead, Pink Floyd, Jimi Hendrix, Cream e Santana foram alguns dos grandes revolucionários na música nos anos 1960. (GOFFMAN; JOY, 2007).
Em 1966 Kensey e seus Pranksters estavam realizando “encontros” públicos de LSD, também chamados de “Testes de Ácidos”. Eram acontecimentos abertos a todos, onde grandes jarros de refrigerantes eram enchidos com doses cavalares de LSD, e barulhos perturbadores e música eram tocados em volumes exagerados. Esse carnaval de jovens selvagens estava começando a preocupar as autoridades dos EUA, mas como o LSD ainda era legal, não havia muito que fazer. Foi nesse ponto que a imprensa e os políticos, que estavam em alerta desde a demissão de Leary, se tornaram claramente apocalípticos e difamadores. Foram realizadas três audiências para atacar o LSD, todas a mando da CIA. Embora Timothy Leary e Allen Ginsberg tivessem participado, ao lado de outros defensores dos psicoativos, e testemunhado oferecendo idéias sensatas e conciliadoras, por todo o país começaram a aprovar leis proibindo o LSD, atacando desse modo o que Leary chamava de a quinta liberdade, onde o ser humano tem o direito de controlar seus próprios estados de consciência, e o Estado não pode impedir as pessoas de alcançar qualquer estado mental. Mas a década de 1960 ainda reservava algo para os jovens agitadores. Em 14 de janeiro de 1967, em São Francisco, Califórnia, uma convocação ecoou em uma grande cadeia de rádio: “amanhã, grande reunião das tribos. Tragam sininhos, plumas flores, tambores, colares, flautas, crianças, qualquer coisa, você mesmo”. No dia seguinte eles chegaram, dezenas de jovens, embora menos que os 100 mil esperados apareceram. Barbudos, floridos, as mulheres oferecendo flores, o cheiro de incenso no ar, caras pintadas, viagens de ácido, etc. Aparentemente a polícia não com pareceu, mas eles sabiam que estavam sendo vigiados. À noite Allen Ginsberg, de pé para a nação paz e amor, entoou um cântico religioso hindu, acompanhado pela multidão que tocava cítaras e tambores. A explosão hippie aconteceu naquela noite, estava fundado o movimento. (DIAS, 2003)
O episódio inaugurou a temporada flower power californiana, conhecida como o “Verão do Amor” e transformou em confusão o ambiente calmo que era partilhado pela comunidade relativamente pequena de comedores de ácido. Não havia comida, nem alojamentos suficientes para todos os imigrantes, e os filósofos de rua não podiam oferecer nada além de conforto e conselhos. Delinqüentes juvenis, psicóticos, esquizofrênicos, toda a sorte de jovens perdidos estava solta nas ruas de São Francisco. Os criminosos chegaram com drogas mais pesadas, como heroína e metanfetamina, e os jovens de olhos brilhantes logo foram suplantados por jovens de olhares vazios e perdidos. (DIAS, 2003)
Em Oakland, Califórnia, em 1966, Huey Newton (1942-1989) e Bob Seale (1936 -), dois estudantes negros, influenciados pelas idéias políticas do movimento Black Power , criaram o Partido Pantera Negra para Defesa Pessoal. Naquela época, a comunidade negra de Oakland era controlada por uma força policial inteiramente branca; o racismo, a brutalidade e o excesso de autoritarismo eram comuns. Newton, tendo estudado minuciosamente a Declaração de Direitos e a Constituição dos Estados Unidos, concluiu que os afro-americanos podiam usar armas e policiar a polícia. Assim, junto com alguns outros membros armados de rifles, saíram atrás da polícia de Oakland para garantir que ela estava fazendo seu trabalho adequadamente. Logicamente os policiais não gostaram da atenção. Enquanto os Panteras cresciam e se tornavam mais fortes, impondo medo tanto em brancos como negros, a nova esquerda e inclusive segmentos hippies se aproximaram deles. Os Panteras queriam trabalhar com o movimento contra a Guerra do Vietnã, assim como a nova esquerda e os hippies. No primeiro ano da era hippie, 1967, seu estilo de vida anarquista estava no auge, e a nova esquerda estava lentamente abandonando a luta política; não haviam informações concretas sobre a guerra, apenas sabiam que dos aproximadamente 500 mil soldados americanos que estavam no Vietnã, morriam aproximadamente 500 a cada mês. Não sabiam com exatidão quantos vietnamitas haviam sido mortos, mas era cada vez mais claro que os soldados americanos e do exército sul-vietnamita estavam atacando a população civil. No entanto, o outono de 1967 trouxe um alento e esperança ao movimento contra a guerra.
Jerry Rubin (1938-1994), influente ativista social, organizou uma manifestação contra a guerra, no Pentágono e usou de um peculiar argumento para atrair os hippies: por ser um edifício de cinco faces, apontando para o leste, Rubin alegou que o prédio era um símbolo mágico do mal, e que eles iriam “fazer levitar” e “exorcizar os espíritos malévolos”. O prédio se ergueria 15 centímetros, os demônios fugiriam e a guerra acabaria. Compareceram cerca de 75 mil ativistas.
Houve um grande florescimento de criatividade, os jovens estavam em constantes mudanças, experimentando novas drogas, novas experiências com o livre pensamento e novos estados de alteração da mente. Esses jovens expandiram as fronteiras pelas quais os indivíduos buscavam liberdade, tanto de forma interna como externa.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

L&Pm e a Beat Generation

A Editora L&Pm já disponibiliza em seu site uma prévia do que vai sair em 2009. Entre os relançamentos como Geração Beat, coletânea de textos e artigos organizados por Cláudio Willer que introduziram no início da década de 1980 a geração beat no Brasil, também encontraremos em breve nas livrarias On the Road - O manuscrito original (que já consta no sistema de busca do site da Livraria Saraiva) e Visions of Cody (Visões de Cody), esse considerado a verdadeira obra-prima de J. Kerouac. Espontâneo e expiremental, é o ápice da prosa livre. Caótico e incompreensível em certos momentos, a obra contêm transcrições reais de conversas entre Kerouac e Cody Pormeray (Neal Cassady).
Visions of Cody é aclamado como "o On the Road que deu certo", pois segundo J. Kerouac não houve o corte arbritário nem as vírgulas inúteis dos editores. É Kerouac simples e puro, sem censura. Ou até onde a tradução permite...

Trecho de Visions of Cody, disponível no endereço
http://www.lpm-editores.com.br/v3/livros/Imagens/visions_of_cody.pdf


ESTE É UM VELHO DINER como aqueles onde Cody costumava comer com o pai, há muito tempo, com o teto e as portas deslizantes típicas dos vagões – a tábua onde cortam o pão está muito gasta como que por farelos de pão e uma plaina; a geladeira (“Olha só, eu trouxe umas batatas suíças para a janta, Cody!”) é um negócio de madeira escura com puxadores antigos, janelas, paredes ladrilhadas, cheia de frigideiras, manteigueiras, pilhas de bacon – as lanchonetes antigas sempre têm um prato de cebolas cruas cortadas prontas para os hambúrgueres. A chapa é muito antiga e escura e solta um cheiro muito apetitoso, como o cheiro da pele escura de um presunto ou de um pastrami envelhecido – A lanchonete tem bancos com assentos de madeira lisa – tem umas gavetas de madeira onde os pães compridos de sanduíche ficam – os balconistas: ou gregos ou com narizes avermelhados pela bebida. O café é servido em canecas de porcelana – às vezes escurecidas e lascadas. Uma velha panela com um centímetro e meio de gordura preta está na chapa, com um tacho de fritar (também todo engordurado) dentro, à espera das fritas – A gordura derretida é mantida quente dentro de um pequeno bule branco. O revestimento de zinco atrás da chapa brilha com o lustre de trapos passados em cima das manchas de gordura – O caixa tem uma gaveta de madeira tão velha quanto a madeira daquelas escrivaninhas com tampo retrátil. As coisas mais novas são o caldeirão a vapor, as cafeteiras de alumínio, os ventiladores de piso – Mas o balcão de mármore é antigo, está rachado, marcado, entalhado, e embaixo dele está o velho balcão de madeira do fim dos anos vinte, início dos trinta, que acabou parecido com o assento dos velhos bancos dos tribunais, só que com inscrições à faca e cicatrizes e algo que sugeria décadas de comida gorda deliciosa. Ah! Sempre o cheiro de água fervendo misturado com o de carne, de carne cozida, como o cheiro das enormes cozinhas dos internatos de paróquia ou dos hospitais antigos, o cheiro da cozinha do porão marrom – esse cheiro é o cheiro mais faminto da América – um cheiro COMIDOSO, não só picante – é como se o detergente tivesse lavado uma panela de hambúrguer – sem nome – lembrado – sincero – faz nossas tripas contorcerem-se em outubro.

O CINEMA B CAPRICIO: o revestimento de vidro na marquise, onde por cima dele as letras móveis deslizam, está quebrado em alguns lugares e dá para ver as luzes lá dentro e algumas delas quebradas; logo adiante as letras sempre erram a ortografia – Curtas-Mertagens etc. – Sempr edois ótimos filmes (as letras assim mesmo, mal colocadas) e assim de longe dá para ver a marquise sarapintada (ela fica suspensa da fachada do prédio por barras e ganchos de metal pretos de fuligem – logo atrás do topo da marquise uma janela sem nome com uma tela pesada e cheia de pó, provavelmente a sala de projeção) – de longe não dá para ler e as letras são colocadas por garotos loucos e estúpidos que ganham dezoito dólares por semana e conhecem Cody e aquilo tem a maior cara de cinema B. A calçada em frente é suja, com cascas de banana e manchas de vômito ou garrafas de leite quebradas – o piso na entrada é de ladrilhos – um tapete de borracha rasgado vai até a bilheteria, que tem decoração carnavalesca e arabescos e é pintada num tom espalhafatoso de marrom-alaranjado (só por causa dos bilhetes); o dono judeu de óculos e meia-idade recolhe os bilhetes. Os pôsteres na parede externa são sempre os mesmos, filmes B terríveis – seriados em doze partes, faroeste ou filmes de fantasia e baratos – garotos negros brigando em frente. Do outro lado da rua tem um posto de gasolina – o diner fica na outra esquina – logo depois do cinema tem um lugar que vende cachorro-quente e Coca-Cola com uma propaganda enorme da Coca na base do balcão e com um tampo de mármore tão velho que já está cinza e lascado, coberto por garrafas de xarope de refrigerante e baralhos e outras porcarias, e embaixo, uma chapa de madeira muito antiga que usavam para fechar o lugar à noite, agora pregada embaixo da Coca-Cola, está tão maltratada pelo tempo e velha, e antes era pintada de marrom, que agora a cor é indefinida como a cor de merda num fundo cinza, quase a própria calçada cinza-merda tapada de baganas e papéis de chiclete. Este é o fim do mundo, onde Codyzinhos esfarrapados sonham, enquanto os ricos planejam auditórios de plástico e fachadas altíssimas de vidro em frente à Park Avenue e aos distritos ricos de Denver e ao mundo inteiro.

NO OUTUNO DE 1951 eu comecei a pensar em Cody Pomeray, pensar em Cody Pomeray. A gente tinha sido grandes parceiros de estrada. Eu estava em Nova York e queria ir para a Califórnia e me encontrar com ele, mas eu não tinha dinheiro. Eu estou numa velha estação elevada de trem na esquina da Third com a 47th Avenue, sentado num daqueles bancos de assento afundado junto às paredes – a placa Carregador está quase toda desbotada – Na parede de madeira crua uma estranha janela com franjinhas de vidro azul e vermelho – duas lâmpadas, uma em cada lado – o piso de tábuas desgastadas – tudo treme quando o trem chega. Um fogão bojudo, a lenha, com o ferro aparecendo pelo cinza (sem polimento há anos) – o cano de fumaça sobe por um metro e depois se estende por outros dois (com uma leve inclinação para cima) e depois sobe por mais sessenta centímetros e desaparece no incrível teto de madeira entalhada, dentro de alguma chaminé com uma cobertura circular e aberturas – o fogão fica sempre ali, e o piso se abaula com o peso. Na parte de cima das paredes ao longo do teto, arcobotantes entalhados em madeira crua como nas varandas vitorianas. O lugar é tão marrom que lá qualquer luz fica marrom – Não é um lugar para as tristezas de uma noite de inverno e me faz lembrar em silêncio das antigas nevascas quando meu pai tinha dez anos, de “88” ou algo assim e de velhos trabalhadores cuspindo e do pai de Cody. Lá fora – uma casa muito louca estilo “alpino” toda retorcida com franjas, um galo do tempo no telhado, o cata-vento pálido e informe verde- ranho, manchado por anos de chuva e de neve, as franjas vermelhas (agora uma tênue sombra de vermelho) da torre elaboradas que só vendo – as tábuas da estradinha estão quebradas e envelhecidas a ponto de ficarem irreconhecíveis.

E NA ESQUINA DA THIRD AVENUE COM A 9th STREET tem uma agência de empregos decrépita, passando uma loja de instrumentos musicais (Western Music Co.) que tem uma calçada cheia de fuligem com poças de mijo e um monte de lixo na frente, e as portas de metal do porão que saem na calçada também imundas e cedem quando a gente pisa. Western Music Co. escrito em branco sobre o vidro verde com luzes atrás mas com tanta fuligem na parte branca que o efeito é sujo e triste. Jornais velhos e tampas de caixinhas de papel empilhadas no vão da porta, talvez por mendigos, crianças ou pelo vento. Na janela, um enorme bumbo, usado, desgastado – saxofones – violinos velhos – Uma tuba em cima duma folha de papel alumínio (tentativa drástica de dar um brilho sensacional à vitrine, como fazem nas lojas modernas). Bongôs – violões – o piso oleado típico, preto e branco (quadrados de trinta centímetros) é o fundo da vitrine. A entrada da W.E.A. fica à esquerda – A placa é uma placa comprida vertical e triangular, preto sobre amarelo, e diz Central Employment Agency – Preto com tábuas de compensado o corredor de entrada – A placa diz (o número é 34) – chefs, cozinheiros, padeiros, garçons, bartenders, etc. – No escritório (luz marrom) o chefe está sentado em mangas de camisa e colete de terno marrom junto à escrivaninha (com gravata-borboleta, cabelo grisalho batido) enquanto dois clientes maltrapilhos aguardam em poltronas de couro azul – um deles é um cara mais velho de cabelos brancos com uma blusa escandinava de esqui. O outro é um grego de pele escura, desarrumado, vestindo um terno escuro que contrasta com a camisa branca e a gravata azul transada – Sobre a escrivaninha vazia em meio aos três um mata-borrão rasgado ao meio, enrolado, com o papelão aparecendo – as paredes de reboco rústico pintadas de marrom e amarelo – jornais dobrados pelo escritório – o terceiro cara sendo entrevistado, sentado no revestimento do aquecedor de costas para a grande janela de vidro que dá para a estação elevada onde os observadores ficam vadiando sem motivo (ou para o estabelecimento ao lado, um lugar esquisito onde gordos de avental fabricam etiquetas para bonecas). O chefe telefona, o cara sentado (com o colarinho aberto e um uniforme da Army-Navy Store) grande, como um boxeador, espera inclinado para a frente com as mãos espalmadas nos joelhos – O prédio é de um vermelho muito antigo – tijolo à vista de 1880 – três andares – acima do topo eu vejo o antigo prédio comercial italiano cósmico de dezoito andares com enfeites e uma iluminação azulada dentro que me lembra da eternidade, a enorme casa crepuscular onde todos estão vestindo seus casacos – e descendo os degraus pretos como escadas de incêndio para jantar na masmorra subterrânea do Tempo poucos metros acima da Cobra – e o Doutor Sax sobe desajeitado pelas paredes com suas ventosas enquanto a noite cai – e o superintendente dorme. Enquanto isso, na porta ao lado da loja de instrumentos fica uma sapataria, agora fechada e escura, e aí o neon rubro Harmony Bar and Grill acima da calçada cinzenta.

O BANHEIRO MASCULINO na estação elevada da Third Avenue tem paredes de madeira pintadas de verde (para dar o efeito de um lambril), amarelo até o velho teto de madeira entalhada – o cheiro de mijo é como amônia – o mijo em vagas no mictório como o trem ao chegar sacode tudo – lá em cima da parede, onde a tinta é amarela, um cabide acumulou fuligem (como a neve caída se acumula em um galho) e tem uns bons trinta centímetros, como se fosse uma enorme barata – alto demais para alcançar – o vaso tem uma tábua estilo latrina com um furo para se abaixar – misteriosamente cercado por uma cerca de encanamento, como um parque – o mesmo vitral mas sujo e com uma correntinha para abrir, como a da descarga – O efeito do lambril proporcionado pela cor escura depois amarelo até o teto é o mesmo das salas de leitura tiquetaqueantes em pulgueiros de última categoria como o Skylark em Denver onde Cody ficou com o pai e vagabundos ficam sentados nas cadeiras que rangem com bonés retos na cabeça cheios de manchas de graxa vindas provavelmente de Montana eles lêem os jornais soturnos para mostrar que à noite não ficam de bobeira pelos becos tomando trago e na verdade eles recém jantaram no restaurante com os preços irrisórios escritos com sabão nas vidraças – Sopa 5¢, espaguete italiano 20¢, knockwurst e feijão 25¢ (debruçados sobre os pratos comiam às pressas com mãos grandes imundas tristes, fortes, velhas cabeças embonezadas e inclinadas em uma congregação digna de pena, só o necessário e as necessidades, nada de “jantar” aqui) na verdade o mendigo narigudo mais plangente do mundo, um nariz vermelho enorme que na verdade ele se escapuliu assim que deixou o restaurante para tapar aquele horror com o boné – uma grande caricatura paródica da Águia – tinha gasto vinte centavos em comida que eu vi ele largar no balcão e se desfazer com relutância, um prato de espaguete ou de legumes, as porções pareciam ser legais, com três fatias de pão, não duas, eu vi pilhas de batatas cozidas ao lado da carne enquanto aqueles pobres-diabos me partiam o coração com suas roupas inconcebíveis, casacos da Primeira Guerra, bonés de beisebol pretos pequenos demais como o do pai de Cody com uma copa estúpida, cotovelos inclinados sobre as humildes refeições imundas – vi as bocas deles, como bocas de menestréis, enquanto comiam... o mendigo narigudo se afastou dos vinte centavos muito (essas “saladas” de tomate são dignas de pena) devagar, arrastando os pés a passos lentos, e foi saindo das dependências do restaurante para a calçada, onde no outubro gelado com a chegada do inverno ele saiu arrastando os pés numa linha reta em mangas de camisa e nada mais e calças surradas como as calças dos vagabundos holandeses nos moinhos e no estrume, a cabeça baixa como se sustentasse o peso do imenso nariz melancólico (duas vezes maior que o de W. C. Fields!) – (não resta esperança, pedestres “nada bons” por todo lado). Os lambris dos albergues – fiquei impressionado com aqueles “chapéus desabados aventureiros” – anos de chuva fazem as abas deles se virarem para cima e para baixo à la louca e ainda assim só porque são esses velhos caubóis que estão usando eles os chapéus não perdem o enorme charme indefinível da América vasta e livre que se espraia com estradas de ferro e mesas distantes – aquele australiano, aquele pioneiro, aquela elegância da fronteira que se adquire com a chuva – nas cabeças distantes e oblíquas deles. E eles são aventurescos, um cara recostado na parede tem o mesmo olhar dum garoto de onze anos que fuma o primeiro palheiro encostado na parede da garagem depois do jantar na escuridão interessante de Eau Claire, Winsconsin – o mesmo jeito maroto como se a mãe estivesse dando um sermão nele – o mesmo olhar aventuresco dos caminhoneiros quando param sozinhos numa barraquinha da Coca-Cola em um cruzamento à noite no Texas e a enorme caçamba fica esperando por eles enorme do outro lado da estrada, com o estepe espiando por baixo da cabine que nem o emblema de carneiro fica espiando na tampa do radiador dos Dodges – o carneiro voador da estrada – e os dois sujos e soturnos e vindos de longe e quietos estilo Henry Fonda e falando um com o outro dum jeito que não dá para ouvir e quando os dois saem juntos eles se movimentam com a mesma tristeza como se essa aventura a dois estivesse forçando eles a lamentar o mesmo caminho cuidadoso e lá vão eles na noite deles além de qualquer coisa de onde você que está olhando tudo fica, eles foram embora para nunca mais voltar e já foram e vieram como fantasmas atravessando os seus olhos e os mendigos têm a mesma tristeza grave, cuidadosa e aventuresca quando ficam empertigados de pé em frente à parede dum beco olhando para a frente com os olhos e as bocas úmidas de bebida brilhando à luz da lua numa Bowery lunar, cuspindo ou dizendo “Ô amigo, dá um trocado pra mim tomar um café”, e nessa frase tem uma afirmativa “Eu vim de muito, muito longe pra ficar escorado nessa parede – forasteiro – e você não precisa ficar me lembrando dos problemas que tive e dos quilômetros que andei – porque afinal eu sou de Houston e você é um maldito nova-iorquino que nunca teve no abençoado Texas –”

AH, MASTURBAÇÃO. Não tem sentido algum arriar as calças como se fosse cagar e depois, porque você tá com preguiça demais para se levantar, ou até de se mexer, simplesmente tocar uma punheta (pensando nas coisas adequadas) e no delicioso auge deixar a porra jorrar para baixo, no meio das pernas, enquanto a necessidade do momento é a de ir para cima, para a frente, para fora, de se exaurir, de botar tudo para fora como se a gente raspasse o quanto tem nas bolas e espremesse tudo para fora do pau – Não, mas com o troço se agitando e mandando ver lá embaixo, não só que o assento restringe os sobressaltos naturais em arco do caralho – no grande momento dá uma tristeza repentina porque você não consegue botar pra dentro, para fora, para cima, para a frente – fica lá sentado como um idiota (como um homem senta para mijar) se escorrendo todo por baixo em nome da maldita higiene e da conveniência numa posição esquisita e lamentável, na verdade castrado na posição “pernas enroladas nas calças e barra da camisa solta à la cagada” – e por pouco você não se satisfaz de verdade mas acaba não tendo feito nada além de esvaziar as bolas como se você tivesse enfiado um trapo lá dentro e secado o desejo da sua vida com um esfregão. Bom, Cody aprendeu ligeiro.

PERAMBULEI PELAS RUAS DE NOVA YORK e sonhei em atravessar o país outra vez. Saí atrás de Victor, que estava usando um casaco caro muito esquisito como pêlo de camelo, que dava pelos joelhos, com uns desenhos muito bonitos e escuros mas ainda assim um tanto Cristo demais para um casaco – caminhando com passos muito largos pela Second Avenue – deve mesmo ser Victor mesmo que eu nunca tivesse notado como ele é alto a não ser que sejam aquelas mães italianas nanicas que ele estava passando no outro lado da calçada enquanto eu seguia ele que faziam ele parecer tão grandioso – passos largos de profeta – levando um pacote enrolado em papel marrom – rumo Leste em direção à First Avenue – parecia estar andando devagar mas para mim era difícil acompanhar o ritmo – e eu pensando “É bom eu estar com o meu Proust – caso eu acabe seguindo ele até o fim que tudo indica é a Paradise Alley lá no rio eles vão ver não só que o meu exemplar está em frangalhos mas também que eu levo ele pra cima e pra baixo a sério porque estou lendo mesmo, muito entretido na rua como eles ficariam” – um erudito mesmo, um místico hip – mesmo que fossem questionar minha camisa vermelha de outubro mas eles não fariam isso – eu ia perguntar “Onde tá a Nory?” e ele ia responder “Ela é minha irmã” e depois eu ia encontrar eles e a gente ia ficar em silêncio e eu acho que eles iam ficar pensando por que eu vim, a não ser que ficar espiando os subterrâneos não seja razão suficiente para eles porque eu estou – Teria que ser me juntando a eles naquela calma sombria, se não sombria então martirizada no silêncio quase insensível, calma, ou reticência, ou estupidez burguesa, ou provavelmente uma grande paz séria e santa como durante a passagem diáfana de Victor pela rua enquanto caminha sem nem olhar para a esquerda nem para a direita e lá vai um garotinho atrás dele seguindo meio que de brincadeira ou por acidente, mas acima de tudo eu penso com espanto e até quem sabe com amor como se Victor parecesse Jesus para ele também e sendo um garoto ele deixa bem claro que quer estar perto da fonte de calor e de luz – Uma coisa esquisita para um americano fazer em suas peripécias ao longo desses anos todos e especialmente agora em 1951 – O que vão dizer da “carreira” dele – o que ele está fazendo nesse instante – daqui a cinqüenta anos quando ele estiver velho e moribundo num asilo recém-construído onde os interesses vão estar tão afastados das loucuras à la Cristo subterrâneas rimbaudianas motociclísticas em Provincetown que não consigo nem imaginar – e o corredor de entrada dele tem o pior cheiro martirizante: o cheiro de sidra – ele subiu as escadas, eu ouvi as portas se fecharem, pensei que talvez o próprio JC pudesse estar cagando, mijando (e é claro) mas principalmente se será que Victor dá uma cagada solitária no banheiro sem nada do prédio caindo aos pedaços e tem a mesma sensação que eu enquanto fica lá sentado olhando as paredes estragadas, sentindo o mesmo fedor, escutando os mesmos barulhos, com as mesmas sensações nos pés e talvez o mesmo engourdissement quando fica sentado por muito tempo, e volta para o quarto (como eu faço) pensando nos bagulhos que trouxe para casa num pacote e nas coisas em cima da mesa e nas pobres oscilações solitárias do tempo e da consciência como todo mundo?

ENTÃO EU FICO SENTADO EM JAMAICA, LONG ISLAND à noite, pensando em Cody e na estrada – veio uma neblina – o gemido grave e distante de uma buzina – uma golfada de vapor da locomotiva, ou ainda as batidas metálicas – um carro passa com o som que nós todos conhecemos do amanhecer na cidade – me lembra de Cambridge, Massachusetts, pela manhã e eu não fui para Harvard – Longe bem longe o murmúrio ou um grito dado por (alto, vibronado) um trem numa curva de aço ou um carro derrapando – o ronco de um caminhão que se aproxima – um caminhão pequeno, mas canta os pneus na neblina – um “bop-bop” ou “bip-bip” repetido vem do pátio ferroviário, talvez o maquinista acione delicadamente o apito a diesel para avisar que percebeu a bola no ar do guarda-freios ou do inspetor ferroviário – o som daquilo tudo em geral quando não tem mais nenhum barulho ao redor parece é claro alguma coisa marinha mas é também quase como o som de uma estrutura viva, assim como quando você olha uma casa você imagina que ela esteja contribuindo com mais uma respiração o silêncio ensurdecedor – (chega até o ponto em que, em meio ao silêncio, dá para ouvir o leve SQUIII de alguma coisa, as asmas inomináveis da garganta do Tempo) – e agora um homem, provavelmente um caminhoneiro, está berrando ao longe e soa como um jovem aventureiro brincando no escuro – a harmonia dos freios a ar parando em dois intervalos, primeiro momento, o som de alguma coisa derretendo e ecoando o segundo momento e harmonizando – um amontoado de folhas amarelas de novembro numa árvore desfolhada indefesa e castreada fazem um PLIC bem baixo e bem fraquinho enquanto farfalham esperando a morte. Quando vejo uma folha cair, sempre digo adeus – E o som disso é um som perdido a não ser que tudo esteja quieto como no campo e se estiver eu percebo que faz a terra tremer, como as formigas nas orquestras – Murmúrio, agora o som terrível dos alto-falantes na Fábrica de Leite, a voz como se saísse de um cano de fumaça abafado e amplificado – uma voz como a noite – um grande grilo com bordas de aço – (agora parou) – uma vez ouvi bem alto “Por favor desligue a água”, a mulher, a noite chuvosa, fiquei chocado – Uma porta de carro batendo, o clique, o clique moderno e aveludado da dobradiça antes da batida macia – a pancada, a batida macia e almofadada de carro novo – um homem de chapéu e casaco envolvido com alguma coisa pomposa, secreta, acanhado – O lugar respira; parece querer me dizer algo compreensível –

FUI PARA O HECTOR’S, a gloriosa cantina da primeira visão de Cody em Nova York quando ele chegou no final de 1946 todo empolgado com a primeira esposa; fiquei triste quando me dei conta. Um balcão brilhante – paredes decorativas – mas ninguém percebe o velho teto de estuque antigo decorado na verdade quase barroco (Luís XV?) escurecido agora castanho-claro esfumaçado exuberante – de onde os lustres pendiam (obviamente era um restaurante antigo) agora lâmpadas elétricas em armações metálicas ou pantalhas – Mas o efeito geral é o de comida brilhante no balcão – assim as paredes não chamam tanta atenção – espelhos do comprimento do teto e pilastras espelhadas dão uma sensação estranha de espaço – painéis de madeira marrom com cabides e partes das paredes rosa decoradas com imagens, entalhes – Mas o balcão! brilhante como a Broadway lá fora! Enormes fileiras – um grande balcão em L – enormes fileiras com cubos de gelatina de menta em vidros; cubos de gelatina de morango brilhando vermelhas, gelatinas misturadas com pêssegos e cerejas, gelatinas de cereja cobertas com chantili, cremes de baunilha cobertos com chantili; tortas de morango já cortadas em doze fatias, iluminando o centro do L – Enormes saladas, queijo cottage, abacaxi, ameixas frescas, salada de ovos, ameixas secas, tudo – enormes maçãs assadas – pratos abarrotados de uvas, verde-claras e marrons – formas enormes de cheesecake, de torta de framboesa, de lindos pavês crocantes, de um simples bolo de canela, batalhões de éclairs, de bolos de chocolate gigantescos (com um escatológico brilho marrom) – de strudel em pratos fundos, de tempo e de rio – de cookies recém-assados polvilhados – de sobremesas de morango e banana com glacê – bolos de laranja doidos com glacê – sobremesas piramidantes com glacê feitas de framboesas, chantili, biscoitos champanhe na vertical – grandes espaços dedicados ao esplendor dos bolos de café e das roscas – Tudo isso intercalado com garrafas brancas de leite muito louco – Depois as montanhas de pãezinhos – Depois a parte para valer, o balcão com o prato alucinado soltando fumacinha – Cordeiro assado, lombinho de porco assado, lombo de gado, peito de carneiro assado, pimentões recheados, galinha cozida, frango recheado, coisas para deixar a boca dos coitados sem dinheiro cheia d’água – grandes espaços com carnes mal saídas dos fornos e uma faca enorme ao lado e o funcionário todo certinho afetado que serve as porções finas como um papel. O balcão do café, as cafeteiras, o jato de leite, o vapor – Mas acima de tudo aquele balcão de doces com glacê – abundantes como a chuva – uma promessa de alegria suprema na grande cidade da curtição. Mas eu nem cheguei a mencionar o melhor de tudo – os balcão de frios e sanduíches e saladas – com panelas desmedidas de tudo quanto se pode passar no pão com coberturas de cream cheese polvilhadas com cebolinha e outros temperos chamativos, o salmão curado cor-de-rosa com um aspecto adorável – presunto – Queijo suíço – todo o balcão brilhando com uma alegria fria que é salgada e alimenta – peixes frios, arenques, cebolas – enormes pães de centeio fatiados – e assim por diante – coisas para passar no pão de todo tipo, saladas de ovos grandes o suficiente para acabar com a fome de um gigante decoradas e enfeitadas na panela – em enormes formas sensuais – saladas de salmão – (Pobre Cody, diante disso com os sapatos surrados de Denver, com o terno literário “de imitação” que ele queria usar para ser aceito nas cantinas de Nova York que ele achou que seriam marrons e desinteressantes como as de Denver, com comida comum) –

AQUELA SENSAÇÃO DE PRIMAVERA nos atinge durante o veranico na estação de metrô por causa de alguma coisa quente (o sol no andar de cima) mas ainda assim úmida como os restos do inverno que escorrem – como os galhos molhados brilhando às três horas numa tarde de março – como a G Street em Washington quando eu era jovem e andava despreocupado imitando Big Slim com passos curtos, empertigado e de mente aberta E Aí meu Chapa Beleza, caminhava desse jeito no sol fora das marquises e das galerias e em meio à vida botequeira cor de laranja que descascava e de repente uma sensação escura e fria vem de um porão aberto ou talvez de uma brisa do rio Potomac, e é primavera. A senhora do metrô está sentada no banco segurando o Journal Américain com as duas mãos enluvadas pretas – um rosto gozado tipo o da Elly mas envelhecido (cinqüenta e cinco) com óculos, parecendo franco-canadense, como uma tia minha que fazia biquinho com os lábios do mesmo jeito no meio das pilhas de madeira no oeste de Massachusetts ou no norte do Maine em dias cinza que exalavam uma neblina de pinho enquanto os filhos dela ficavam de pé no pátio com as mãos na cintura – Mas na verdade ela usa um vestido verde bem decotado e sexy por baixo do casaco vermelho com botões grandes de menina (como uma garotinha de Pawtucketville durante as novenas à tarde) – o vestido verde tem uma gola de fita que se abre mais abaixo e deixa à mostra o colo o esterno que já não é mais claro como o leite mas vermelho do sol. A verdade é que, além disso, ela usa sapatos de veludo preto com salto alto e olhando para a minha tia de perto eu vejo que ela tem uma vitalidade americana e que o rosto dela quando se abaixa por cima dum papel faz aquele mesmo biquinho que a pobrezinha da Elly fazia envergonhada quando às vezes eu pegava ela não fazendo nada em uma nesga de sol da tarde no nosso quarto (Apt. 62) talvez porque ela se visse de um jeito parecido com o dessa mulher nos dias de menos graça – mas tem alguma coisa professoralmente séria e grave no rosto dela quando lê. Ah, vida.

AH, ESTRADA! TENTANDO IMITAR O GOSTO de uma carne de porco que comi em Hartford em 1941 quando eu estava passando pela traseira do caminhão (com o meu cachorro), o caminhão levando os móveis da minha família de volta para Lowell, e por uma estranha coincidência nós paramos em Hartford para almoçar num diner bem ao lado do Atlantic White Flash onde eu trabalhei com Mike e Stanfield e Irv Morgan assim que cheguei na cidade – mas hoje de manhã, lembrando do gosto delicioso do que eu acho que era porco assado e aquecido no vapor, num prato do dia com purê de batata, centenas de caminhoneiros enormes e até uns garotos da minha estação devorando a comida – então eu (e todo o pessoal da mudança) provamos e como era dezembro e fazia um friozinho e estávamos na estrada aquilo fez um bem indescritível para mim, e então eu pensei como um idiota, “É a melhor costeleta que eu já comi” – e no fim Mike estava logo ao lado da estação e eu falei com ele depois de comer essa refeição que eu ainda me lembro depois de onze anos e ele perguntou “Que raio você tá fazendo aqui?” e eu disse “Tá vendo aquele caminhão lá? a gente tá se mudando de volta para Lowell, eu e a minha família, você não sabia?” e “Huahua!” Mike só deu uma risada e saiu e fez festa para o meu cachorrinho Wacky (Cachourrinho – era assim que ele chamava os cachorrinhos) por um tempo e em seguida o caminhão arrancou, me levando triste de volta para o cenário da minha infância enquanto da traseira do caminhão eu ficava olhando a estrada cada vez mais familiar se desenrolando – então eu acordo hoje de manhã, encontro carne de porco na geladeira, duas costeletas, e cozinho elas no vapor em uma panela colocada dentro de outra panela com água (três dedos) que eu fervo com uma tampa por cima de todo o esquema, tentando manter aquele precioso sabor de porco sem fritar e sem nenhuma situação gorda do tipo e tudo porque eu me lembro daquela costeleta em Hartford em 41. A gente vai direto para a cova – um rosto só cobre a caveira por um certo tempo. O jeito é esticar o rosto por cima da caveira e sorrir.

TOM VEIO ME BUSCAR na minha casa bem-iluminada de sexta-feira com Mamãe vendo tevê, a sra. Blackstone falando pelos cotovelos, as luzes acesas do banheiro até a sala enquanto Esquiremente eu faço minha ablução fim-de-semanal e assobio e canto – eu e Tom de bom humor – A primeira complicação é Rose querendo que a gente vá visitar ela no bar da Richmond Hill que é o que a gente faz atravessando a noite a toda num Buick grandão (e ela recém ligou com o pai o relojoeiro russo sentado bem ao lado do telefone num estupor triste bocaberta na poltrona enquanto a filha sexy e bucetudinha fica ligando para os garotos) – Encontramos o bar, rodando pelo clímax das folhas caindo e logo Halloween e eu com a camisa vermelha de outubro ah e tão triste que todo ano a gente acaba perdendo o nosso outubro! – coitadinha da Rose com o vestidinho curto estilo anos trinta, pernas bonitas, salto alto, rosto magro, cigarro perene, olhos tristes de bebida no banco forrado de couro com uma pequena espinha hoje à noite no queixo bem onde você poderia beijar ela e a espinha ia estourar e eu odiava olhar para a espinha naquele rosto liso e agora olhando para trás (a espinha já se foi) eu lembro dela como um tipo de mancha de nascença que eu costumava ver no queixo das antigas estrelas de filme nas fotos em frente ao cinema – me perguntando se aquilo era tinta – A gente se espreme os dois na cabine telefônica para ligar para Ed e ela diz Tom entra aí e quando Tom entra ele tem que empurrar o painel deslizan te para dentro da xotinha dela e ela olha bem no olho dele e ele empurra cada vez mais forte para conseguir entrar e ela diz “Vem, vem, mais forte –” e dá risada e o ar logo não tem mais ar na cabine – Ela tem outras responsabilidades de bebê então vamos para Nova York depois daquela empolgante cervejada preliminar de sexta-feira à noite de pé (como nos bares de Cody em Denver) ao lado dos bancos dando risadas novas e recontando (eu nunca imaginei que seria a primeira noite de um trago ininterrupto de cinco dias) – porque a noite de sexta para os festeiros é como a manhã de segunda para vendedores ambiciosos. Naquela noite ainda mais emocionante de muito tráfego todo mundo indo para Nova York a gente desce o Queens Boulevard voando pela centésima vez desde que a gente se conhece (e como Cody fazia em Hudson) conversando empolgados, escutando rádio Al Collins do Purple Grotto (Al está tocando uma gravação mais devagar então cria um monstro terrível mas entrevista ele do mesmo jeito como se não fosse nada) e outras coisas e eu tão pensativo que nem reagi com a minha reação louca normal quando vejo o panorama brilhante de Nova York e chegamos Tom me deixa no bar do Wilson assim não vamos esquecer de Mac por causa de a gente se encontra lá às dez cravado (a hora também do primeiro round da luta Louis vs. Marciano) e estou preocupado que o Wilson (o lugar do encontro) ia estar lá embaixo vendo a luta que é justamente o que ele estava fazendo (com Marian) e onde Mac recém tava chegando de carro (estacionado na 57th) aparece de repente, só para pegar o primeiro round e a ceva antes de ir me encontrar e por isso não enxerga o aviso que Wilson deixou para mim e de qualquer jeito Wilson está saindo fora do bar porque a cerveja tá cara demais para ficar assistindo luta e aí todo mundo vai para o andar de cima e Marian fica emburrada porque ela meio que quer ir para Westchester de trem mas agora provavelmente para resolver essa indecisão ela tem a excelente oportunidade de botar a culpa em mim por ter encontrado o Mac sem aviso na casa dela, então às 10h10 eu subo correndo as escadas como um louco vibrando com a empolgação de sexta à noite que vinha me agitando desde lá da Ilha e na verdade é claro que desde a garagem do Tom lá no cafundó de Lynbrook onde o nariz brilhante do Buick dele esperava pela gente, na estradinha da garagem lá embaixo o reflexo da luz do banheiro lá em cima enquanto ele também cantava e se vestia e a mãe dele e a família daquele jeito mais rico todo mundo estava mais entusiasmado no meio de todas as luzes de Sair para Festear na Sexta à Noite – enquanto eu subia as escadas exalando essa alegria que talvez venha de viver na Ilha, na TERRA, e entro agitando – e enquanto Tom sai de carro para pegar Ed no Columbus Circle que está vindo de metrô desde Columbia ele também com mil sonhos emocionantes porque terminou o trabalho da escola e ele ama Maria a irmã do Tom e tem alegrias juvenis e anda muito agitado nesses últimos dias – eu subo as escadas correndo e dou de cara com Marian emburrada num roupão no sofá (enquanto decide desistir dos trens porque “claro que agora é tarde demais”), o olhar amuado e soturno das pessoas apegadas a Nova York talvez e o afastamento dela de todas as formas de entusiasmo que não sejam o martírio – e Wilson sentado todo arrumadinho (como nunca vi) de terno e colarinho com um olhar paciente de mártir só dele (os dois apertando os maxilares) porque Marian fica enchendo o saco e de qualquer maneira ele tá acabado depois de uma semana de bebedeiras – e McCarthy entornando a cerveja, a pessoa menos surpreendente lá e agora eu sei porque ele ficou do tamanho de dez homens por duas horas depois de conhecer Josephine – e de todas as pessoas inoportunas desajeitadas e complicadas era justo JOHN MACY quem estava lá (depois de ligar, e sendo agora o cara popular e espirituoso que entretém os Wilson como Wyndham costumava fazer com seu jeito menos elegante e mais masculino) – os quatro sentados, impassíveis, o rádio alto demais transmitindo a voz irritante de Bill Corum que se empolga a cada golpe da luta – eu entro correndo, “Marian! O Tom também tá vindo!” e me deparo com a muralha de pedra de antagonismo e indiferença que me esperava, na verdade tanto que Marian tentou transmitir a mensagem através de uma careta com os olhos e William não ajudou, tanto que eu despreparado como eu estava fiquei lá como se alguém tivesse me dado um tiro no meio da sala, me balançando e tremendo enquanto meu cérebro registrava a atmosfera psicológica e também eu não dei oi para Mac ainda que veio de Poke só por minha causa. É, eu queria ir para a Califórnia e encontrar meu amigo Cody outra vez – e encontrar eu mesmo também.

PÁTIOS EM POUGHKEEPSIE num dia claro, limpo, dolorosamente azul no final de outubro – com o céu dando a impressão de ter sido curado com açúcar, temperado com pimenta e canela e defumado à noite como um presunto sem perder aqueles pontinhos de umidade na pele – em algum lugar da pigmentação. A cidade de Poke, e os pátios com roupas penduradas para secar até onde a vista alcança porque as adoráveis esposas simples perfeitas (como a esposa de Cody em Frisco a mesma coisa) com vestidinhos curtos e pernas sexy à mostra fizeram um pacto natural de que segunda-feira é o Dia de Lavar Roupa – então paira um certo silêncio nos varais oscilantes místicos agora, jardins de silêncio nos pátios – aqui e acolá você vê uma garagem de porta aberta e estantes lascadas com latas de óleo dentro – uma dona de casa de chambre sacudindo um esfregão seco com uma irritação onírica – três delas passando com legumes e se perguntando quem diabos está sentado na varanda de McCarthy – Os pátios silenciosos fazem você pensar nos homens que estão trabalhando com as mãos e deixaram as coisas em ordem durante o dia, deixaram as esposas cuidar das tarefas de casa que numa tarde como essa (toalhas balançando em uníssono mais adiante) é simbólico – os lençóis da noite são arejados com o tititi de segunda-feira – o Senhor fica sabendo no céu ensolarado que mulheres vivem aqui e cuidam da terra – o entardecer vai trazer os homens de volta, batendo nas paredes para que deixem eles entrar, deslizando até em casa com patins barulhentos para ocupar (num sonho cego) as casas que passaram o dia todo respirando e esperando por eles – enquanto isso as crianças, donas das varandas secretas, dormem e sonham com o ondular dos varais, ártico, triste. Longe, como um novo país de macacos nas árvores à margem do rio (sem rio, só um córrego de jardins) as extensões e continentes de roupa limpa pendurados por habitantes da floresta e mulheres de dois metros: essa é uma África que você encontra num dia preguiçoso na América – Ali, mais perto, chegam saltitando de curiosidade os pardaizinhos caídos – fazendo perguntas – e no instante seguinte eles somem.

LEMBRO DE CODY espantado, me contando, na última vez que ele veio a Nova York, da meia hora de batidas na porta quando ele estava na casa de Josephine, da descida pela saída de incêndio nos fundos, do proprietário que comprou o terreno abrindo a janela e perguntando “O que está acontecendo?” e Cody dizendo “O senhor não vai achar que um sujeito com um jeito amigável como eu, e acredite, eu sou um bom sujeito e amigável, seria e mesmo que seja estranho eu dizer isso assim para um estranho – mas eu não sou ladrão – olhe só para mim, olhe para mim e o senhor vai ver.” Me lembra da vez que eu estava vendo a biblioteca de Wilson e comecei a cantarolar uma música enquanto ele discutia com Marian – (“Moonglow”). “O que que te deu para você ficar cantarolando essa música?” “Sei lá.” “É um mistério eterno –” Impossível escapar dos enigmas. Que nem as pessoas sorriem nas cantinas quando elas chegam e sentam na mesa mas na hora de ir embora, quando as cadeiras arrastam no piso em uníssono e elas pegam os casacos e as coisas com um olhar carrancudo (todos no mesmo nível de semicarrancudice que é uma carrancudice especial de frustração porque a promessa feita pelo sorriso na chegada não se cumpriu ou se se cumpriu morreu em seguida) – e durante essa vida curta que tem a mesma qualidade cega inconsciente do orgasmo tudo acontece com as almas delas – é o GRANDE MOMENTO – a soma dos ápices dos relacionamentos humanos – dura um segundo – a mensagem vibratória a toda – mas também não é tão mística assim, é o amor e a sintonia num clarão. É assim que a gente que pira a noite de tudo quanto é jeito (surubas com quatro pessoas, conversas de três dias, viagens transcontinentais ininterruptas) também sente essa carrancudice temporária que nos avisa que é hora de ir dormir – nos lembra que dá para parar com isso – e nos lembra mais ainda que o momento é incapturável, já passou e se a gente dormir dá para reviver ele e fazer mil outras combinações e misturas lindas – embaralhar os velhos arquivos da alma num sono demente alucinado – Então as pessoas na cantina têm que olhar mas só até pegarem o chapéu delas, porque a carrancudice também é um sinal que elas mandam uma para as outras, um tipo de “Boa-noite senhoras” ou talvez uma gentileza interior do coração. Que tipo de amigo ia rir na cara dos amigos na hora de pegar o casaco fazendo uma carranca e de se curvar para ir embora? Esse gesto significa “Estamos indo embora dessa mesa que tinha prometido tanto – é nosso tributo aos tristes.” A carrancudice continua assim que alguém diz alguma coisa e eles se dirigem até a porta – rindo eles atiram ecos de volta à cena do desastre humano – e descem a rua no ar renovado que o mundo providencia. Ah, os corações loucos de todos nós!