Talvez a primavera de 1955, nos Estados Unidos, não seja apenas o início da Geração Beat, mas a pedra fundamental do inconformismo nos Estados Unidos. Empreendida por Allen Ginsberg, Jack Kerouac, William Burroughs e outros tantos jovens poetas em San Francisco, a Geração Beat deu lastro a todas as principais revoluções culturais norte-americanas: a Geração Hippie, o pop art de Andy Warhol (1968-1987) os punks, o grunge, o rap, etc. A noite de poesias na Six Gallery foi o impulso necessário para que os EUA compreendessem que a pulsação da vida estava além das noites monótonas de ócio na poltrona em frente à TV; o american way of life, baseado na tríade casa, trabalho e responsabilidade, estava com os dias contados.
VAGABUNDOS ILUMINADOSCom o fim da 2º Guerra Mundial em 1945, os Estados Unidos viveram um período de conformismo. Esgotados com a depressão de 1929 e as carências provocadas pela guerra – mas com a economia em ascensão, a sociedade americana empurrou o temor nuclear para longe adquirindo novos bens de consumo. Televisores, lavadoras de pratos e automóveis rabo-de-peixe, antes presentes apenas em alguns setores da sociedade, facilmente encontraram lugar na classe média. A América vivia a euforia da era Truman (1945-1953) .
Enquanto grande parte da sociedade comemorava o fim da carestia econômica, a principal corrente dissidente do país, o comunismo, foi duramente atacada pelo macarthismo no final da década de 1940. Artistas como os atores e diretores Charlie Chaplin (1889-1977), Orson Welles (1915-1985) e a escritora Dorothy Parker (1893-1967), abertamente declarados comunistas, foram silenciados até a metade da década de 1950, quando as atitudes de McCarthy provocaram sua própria queda. Nesse ambiente de perseguição política e comodismo urbano, nos subúrbios de Nova Iorque surgiam jovens rebeldes que preenchiam o vácuo inconformista: os hipsters . (GOFFMAN; JOY, 2004)
A euforia hipster nasceu da própria ansiedade nuclear que a sociedade tentava enterrar. A possibilidade de uma nova guerra e do apocalipse representava a fuga perfeita das responsabilidades da vida adulta. O hipster era livre para viver o agora. Embora esse imediatismo de emoções aparentasse um aspecto sombrio e desesperado, ela carregava uma sensação de espontaneidade e vivacidade que faltava às rotinas de escritório e ar condicionado. A maioria dos jovens norte-americanos era educada para ser o “bom moço”, exemplo esperado de homem lógico, eficiente e sereno, facilmente moldado às necessidades de seus empregadores. No entanto, eles sentiam-se descontentes. Não havia espaço para o personagem excitável e intenso em sua rotina diária. Assim, a classe média detestava e invejava os hipsters com a mesma intensidade. Em reação a essa corrente, Hollywood produziu filmes como Assim caminha a humanidade (1956, direção de George Stevens) e Êxito fugaz (1950, direção de Michael Curtiz). Desse modo a sociedade produtiva podia ter o estímulo hipster a uma distância segura.
Influenciados pelos sons selvagens e espontâneos do bebop , calcados no Existencialismo francês e sua visão mundana de um espaço vazio cercado por um abismo sem sentido, eram personagens marginais – os rebeldes perfeitos para uma época paranóica. Como não viam esperança de uma mudança positiva, eles mantinham-se à margem da sociedade. O hipster não queria enfrentar a repressão política e tampouco estava interessado em ofender conformistas “caretas e quadrados”. Esses personagens eram existencialistas e inter-raciais (algo pouco comum na sociedade norte-americana das décadas de 1940 e 1950), identificados por algumas poucas características. Boêmios brancos e negros vivendo no limite da economia, indo juntos para clubes de jazz. Ladrões, vagabundos e desleixados circulando por Greenwich Village desenvolvendo suas próprias expressões lingüísticas. Junkies viciados em maconha e heroína que, segundo os próprios, auxiliava a abandonar a mente racional e incitar o bebop. (FRÓES, 1984)
Nesse meio, havia toda uma nova estética em elaboração e a improvisação do jazz indicava um caminho pouco trilhado pela música ocidental. A adoração do espontâneo e do instantâneo, presentes no período pós-guerra anunciavam a revolução criativa prestes a tomar os EUA no final dos anos de 1940. A idéia era simples: partindo de um ponto comum, uma melodia conhecida, os músicos destruíam o andamento da composição. Elaboravam escalas complexas, algumas vezes diatônicas e destoantes, com altos e baixos. Esse gênero musical, o bebop (pode ser considerado um subgênero do jazz), influenciou substancialmente toda a forma literária e poética beat. Criado no final da década de 1930 por jovens músicos negros, ela tomou projeção no Apollo Theater, em Harlem, Nova Iorque. Embora tenha surgido primeiramente em Kansas City, Chicago, quando deságua em Nova Iorque assume um papel mais amplo para os jovens hipsters da cidade: torna-se sua respiração.
O elemento unificador na Geração Beat era, sem dúvida, a musicalidade e sonoridade na literatura. Embora haja certa dificuldade em relacionar algumas obras à Geração Beat, pode-se tomar como instrumento de coesão a prosódia bop, o novo estilo de jazz da época, que influenciou e inspirou as grandes obras dos artistas de vanguarda. Por não haver um trajeto estético a ser seguido, e por não estarem presos à idéia de um movimento literário, existe uma vasta pluralidade na produção deste grupo. A informalidade da literatura beat, assim como a vida de seus escritores, pressupunha a transformação dos conceitos acadêmicos vigentes da época; por fazerem a distinção entre a obra e a vida desses escritores, os críticos não conseguiram entender suas transgressões enquanto obras genuinamente literárias. A experimentação na Geração Beat trazia o rótulo do moderno e vanguardista, desprezava as convenções sociais e exaltava o direito – e dever – de experimentar. A arte só tinha valor enquanto pudessem vivê-la. (WILLER, 1984.)
A sonoridade da literatura beat é fundamental para compreender as idéias de liberdade desses escritores. O bebop impregnava suas vidas, tornava-se essencial; um modo de andar, de falar, enfim, um guia para o processo de criação artística. A experiência da fusão beat e bop, música e poesia em uma única obra foi abordada de inúmeras maneiras pelos beats, assim, eles produziram uma literatura para ser ouvida e declamada, como música, não para ser esquecida em livros dentro de bibliotecas. Preocupados em resgatar o valor da tradição oral, a prática de ler poesia em público teve ascensão nos Estados Unidos na década de 1940. Criaram uma forma de ajustar as palavras à música e vice-versa. Baseando-se na antropologia, que descreve os costumes das comunidades arcaicas, a importância dos cânticos e ritos sagrados como expressões de encantamento e fusão social, os escritores e poetas beats idealizaram eventos com essa mesma função. Fosse em saraus ou manifestações populares (Allen Ginsberg em 1967, por exemplo), a idéia era propiciar o sentimento de integração do ser humano com os outros, consigo e com seus deuses. Acreditavam ser possível libertar a arte e reintegrá-la à vida, expandir suas experiências e transformá-las em fenômenos coletivos. O ritmo era essencial, uma qualidade inerente à fala, ao canto ou ao verso. A questão do ritmo do jazz é fundamental para a compreensão das principais obras beats. Cada frase tem seu ritmo, e essa batida concentra e marca os acentos da linguagem oral, soltos e instáveis. O uso repetitivo do ritmo da fala, seus altos e baixos, demonstra a imensa carga de coesão social aclamada pelos beats. Sua poesia sonora, não catedrática, era destinada aos ouvidos e revela a preocupação em criar obras de elementos rítmicos, palavras sensíveis ao som, assim como música. (SANTOS, 2004)
De fato, as drogas ajudaram tanto os beats quanto os músicos de jazz a criar com maior espontaneidade e menor inibição possível. O acesso direto ao fluxo que percorre os vários níveis de consciência é a chave para a prosa espontânea, a prosódia bop. Ela foi a solução encontrada para a reprodução do ritmo contínuo do jazz em frases e palavras. Entretanto supor que a criação beat surgiu em decorrência das drogas é acreditar na inspiração como uma força externa ao artista. Eles não produziram nada que não saísse de suas mentes. (MORAES, 1984)
Jack Kerouac em 1951, movido por discos de jazz e doses colossais de benzedrina, suando uma camisa após a outra, concebeu a bíblia beat em apenas 18 dias. O livro On the road foi escrito no ritmo de 14 horas e 12 mil palavras por dia, um rolo de telex com 40 metros de comprimento e 175 mil palavras, datilografado com espaçamento simples e sem margens. Percebe-se o cuidado em trabalhar a variação da altura, intensidade, tom/duração e ritmo das palavras. A idéia de Jack Kerouac era escrever como música. Se o saxofone era a extensão do músico, a máquina de escrever era a extensão do próprio corpo.
...linguagem é o fluxo tranqüilo, a partir da mente, de idéias-palavras pessoais secretas, improvisando (como o músico de jazz) sobre o tema da imagem (...) Nenhuma pontuação separando sentenças-estruturas já arbitrariamente difíceis por falsos dois pontos e vírgulas geralmente desnecessárias – mas o vigoroso traço separando a respiração retórica (como o músico de jazz tomando fôlego entre duas frases) – pausas marcadas que são a essência da nossa fala (...) Improvise tão fundo quanto quiser – escreva tão profundamente, procure tão longe quanto quiser, satisfaça a si mesmo primeiro e então o leitor não poderá deixar de receber o choque telepático e o significado-excitação pelas mesmas leis operando em sua mente. (KEROUAC – apud MUGGIATI, 1984, p. 75) O jazz não atuou apenas sobre Kerouac. Allen Ginsberg usou o ritmo sincopado do bop em seus poemas, como o livro O Uivo (1956), por exemplo. Percebe-se claramente a relação entre o andamento de seus versos e o ritmo do bebop. Gregory Corso, outro poeta beat, afirmava que escrevia como Charlie Parker (1930-1955) e Miles Davis (1926-1991) tocavam. Escreveu no ritmo linear da fala, com versos livres e espontâneos. Era a emoção sobre a frieza acadêmica, os poetas escreviam motivados pela música, alienados de toda a sanidade ou racionalismo que operassem como censor das palavras ritmadas. A reinvenção da linguagem pelos beats é uma criação artística que se valeu do ritmo prosaico emaranhado na forma do jazz. A Geração Beat transformou a literatura americana, a atualizou em sintonia com a música e a fala do seu tempo. A literatura beat é um coquetel de drogas, entre as quais a vida é a mais perigosa. Ela começa no momento em que esses garotos, brancos e de classe média e alta, egressos de universidades e pouco dispostos a encarar o mercado de trabalho e a vida burocrática descobrem a América negra, o bebop de Charlie Parker e Billie Holiday (1915-1959), a América pobre dos cucarachas apanhadores de algodão. A América de jeans e sapatos pra caminhar. A América dos dias puros e inocentes, nem úteis, nem inúteis. O projeto beat era tirar das sombras o mundo dos sentidos, das emoções e dos desejos, das vontades e das paixões. Os beats queriam fundir vida e texto, literatura, benzedrina e uísque. Queriam acabar com a imagem do escritor em seu escritório, datilografando sobre uma vida emprestada e aventuras que não viveu. A idéia era escrever drogado, e que a memória e o inconsciente falassem com toda energia e liberdade. Uma escrita destoante dos códigos literários de praxe. Sexo, drogas e jazz. Alegria e fúria, altos e baixos no correr da vida. A narrativa beat é feita de registros vivos, de porres e viagens de heroína e benzedrina, filosofia e sociologia. (MORAES, 1984)
A maioria dos hipsters, com exceção dos músicos de jazz, não ligava para arte ou literatura. Entretanto, havia um pequeno círculo à margem da vida hipster que formava uma aliança de literários. Boêmios entregues ao excesso do álcool, esses escritores começaram a tomar forma em 1943, na Universidade de Columbia. Neste ambiente transitavam nas estradas, ruas e bares, três amigos: Jack Kerouac, Allen Ginsberg, e William Burroughs. Allen Ginsberg (1926-1997), judeu e homossexual, havia acabado de entrar na universidade para cursar Direito. Seu interesse por literatura, porém, o fazia buscar disciplinas de letras, escrevia sobre a loucura e sobre a bomba atômica. William Burroughs (1914-1997) falava do submundo das drogas e do homossexualismo, era o mais velho de todos. Vindo de família muito rica, o rapaz pôde estudar na Harvard onde se formou em Medicina, embora jamais tenha se adaptado socialmente. Jack Kerouac (1922-1969), ao contrário de William Burroughs, veio de uma família de classe média baixa de Lowell, Canadá, e conseguiu entrar na universidade graças a uma bolsa como jogador de futebol americano. Jack Kerouac se destacava pela produção de uma nova estética literária, ligada à fluidez da mente. O encontro dos três se deu de um modo peculiar: em dezembro de 1943, Lucien Carr (1925-2005), um jovem pintor originário de Saint-Louis, Missouri, é apresentado a Jack Kerouac, por intermédio de Edie Frank Parker (1922-1993), namorada de Jack na época. Imediatamente uma cumplicidade amistosa nasce entre os dois. Não se separam, inspiram-se, parecem dois colegiais. O papel de Lucien Carr é maior que simplesmente distrair Jack Kerouac. Às vésperas do natal de 1943, Lucien conhece Allen Ginsberg em um seminário teológico na 120th Street onde, no sétimo andar do prédio, cada um ocupa um quarto de estudante. Allen Ginsberg, ao ouvir o Trio nº. 1 de Brahms bateu na porta de Lucien Carr, de onde provinha a música. Lucien lhe fala de Jack Kerouac, e em maio de 1944, Ginsberg se apresenta em pessoa no apartamento de Jack, com a intenção de conhecer o poeta. Em poucos dias, Jack e Ginsberg tornam-se amigos, e realizam intermináveis passeios-conversas, nos quais fica mais do que evidente que eles têm muito em comum. (BUIN, 2007)
Em uma discussão abstrata os jovens Jack Kerouac e Allen Ginsberg entram em um discurso mais pessoal. Enquanto Ginsberg explicava como se sentava à sombra dos muros na Graham Avenue e vagava sobre a imensidão do universo, Kerouac contou como ficava no quintal de casa à noite quando todos jantavam e sentia que todos eram fantasmas comendo comida de fantasmas. Alguns dias depois eles se reuniram na casa de William Burroughs, amigo de Lucien Carr, e enquanto Kerouac e Ginsberg tinham outra conversa abstrata, agora sobre arte, Burroughs os interrompeu: “essa é a conversa mais estúpida que eu já ouvi”. Os delinqüentes haviam encontrado seu mestre. O início da Geração Beat estava formado. Muitos outros jovens escritores e interessados em arte se juntaram a este grupo inicial, porém Ginsberg, Burroughs e Kerouac são, sem dúvida, os três maiores escritores da Geração Beat. Entre os vários poetas e literários beats, pode-se destacar Gregory Corso (1930-2001), William Carlo Williams (1883-1962), John Clellon Holmes (1926-1988), Neal Cassady (1926-1968) e Lawrence Ferlinghetti (1919- ), todos presentes na Six Gallery em 1955. (GOFFMAN; JOY, 2004.)
A Six Gallery era uma pequena galeria em uma antiga loja em San Francisco, EUA, onde o poeta Kenneth Rexroth (1905-1982) organizou um evento para apresentar alguns dos seus jovens amigos em uma leitura conjunta, e cinco promissores poetas foram selecionados. Não há coesão quanto a data deste evento. Alguns historiadores e poetas dizem que ocorreu no dia 7 de outubro de 1955, embora a data seja por vezes citada como 13 de outubro, ou até mesmo colocada em dezembro de 1955. Cerca de 150 pessoas estavam na platéia, inclusive Jack Kerouac, que havia sido convidado a ler, mas preferiu recolher dinheiro entre os convidados para comprar três garrafões de vinho. Na noite da leitura, a galeria foi decorada com esculturas surrealistas, construídas a partir de grades de madeira e gesso de Paris.
Philip Lamantia (1927-2005) foi o primeiro. Leu uma série de poemas de seu amigo John Hoffman, que há pouco tempo havia morrido por overdose de peyote. Em seguida, Michael McClure (1932- ) leu Point Lobos: Animism e the Death of 100 Whales. O terceiro poeta, Philip Whalen (1923-2002) leu Plus Ca Change. Allen Ginsberg foi o quarto e roubou o show. Tinha vinte e nove anos de idade e ainda não havia publicado qualquer poesia, ou participado de algum sarau. Ele tinha escrito O Uivo num louco frenesi apenas algumas semanas antes, por isso ainda ninguém conhecia este revolucionário trabalho de longas linhas ininterruptas, como um verso bíblico proclamando gloriosa desconfiança diante do isolamento. A multidão ficou em transe, e Jack Kerouac, agora sentado à beira do palco, começou a gritar GO! GO! até ao final do poema (apenas a primeira parte, o resto ainda não havia sido escrita), Kenneth Rexroth estava em lágrimas e Allen Ginsberg tinha lançado a sua carreira como poeta. O último poeta, Gary Snyder (1930- ) precisou esperar que a multidão se acalmasse antes de ler o poema A Berry Fest. Na manhã seguinte, a repercussão do sarau no Six Gallery foi extraordinária e os cinco poetas se tornaram localmente famosos. O processo de leituras se repetiu inúmeras vezes durante os meses seguintes, com públicos cada vez maiores.
A importância dessa primeira leitura no Six Gallery é a consolidação da poesia em San Francisco, e transformação de vários dos jovens poetas, especialmente Allen Ginsberg, em celebridades instantâneas.
Eu vi os expoentes de minha geração destruídos pela loucura, morrendo de fome, histéricos, nus, arrastando-se pelas ruas do bairro negro da madrugada em busca de uma dose violenta de qualquer coisa, “hipsters” com cabeça de anjo ansiando pelo antigo contato celestial com o dínamo estrelado da maquinaria da noite, que pobres, esfarrapados e olheiras fundas, viajaram fumando sentados na sobrenatural escuridão dos miseráveis apartamentos sem água quente, flutuando sobre os tetos das cidades, contemplando o jazz, que desnudaram seus cérebros ao céu sob o Elevado e viram anjos maometanos cambaleando iluminados nos telhados das casas de cômodos, que passaram pelas universidades com os olhos frios e radiantes alucinando Arkansas e tragédias à luz de William Blake entre os estudiosos da guerra, que foram expulsos das universidades por serem loucos e publicarem odes obscenas nas janelas do crânio, que se refugiaram em quartos de paredes de pintura descascada em roupa de baixo queimado seu dinheiro em cestas de papel, escutando o Terror através da parede, que foram detidos em suas barbas púbicas voltando por Laredo com um cinturão de marijuana para Nova Iorque Dizimados pelas drogas, pelo álcool e desespero, eles se impõem pela sinceridade da confissão. Fantasias dantescas e memórias íntimas se unem em suas obras, menos preocupados com as formas literárias e mais com a pulsação vital do que escrevem. Altos e baixos, assim como o bebop. Não são profissionais do texto, são marginais, vagabundos e desorganizados. Bebem com avidez, entregam-se a toda sorte de vícios. São poetas da existência.
Outro importante pilar da Geração Beat foi a tradição Zen Budista. O budismo americano nasceu com esses poetas que pegavam carona ou se refugiavam no mato – Gary Snyder, Jack Green, Dan Propper, Kerouac, Corso, Ginsberg – para sentir que o que chamamos de vida, longe das convenções, perto do céu, é infinitamente maior que a dimensão da gente. (FRÓES, 1984)
De fato, desde o início do século XX o Ocidente vinha se abrindo para a cultura oriental. Inicialmente, em uma busca do exótico que apresentava uma imagem quase caricata, depois com um crescente interesse místico, nascido da frustração diante dos valores judaicos e cristãos. Assim, quando a Geração Beat surgiu, o Zen já estava presente, e a tal ponto que logo se tornaria moda. Jack Kerouac foi o que mais ajudou a difundir a cultura budista. Não o verdadeiro Zen, mas um aspecto muito pessoal do Zen, cheio de misticismo católico. Ele o descobriu por acaso, quando Allen Ginsberg, estudando pintura chinesa encontrou ensaios de D. T. Suzuki e os mostrou a Jack Kerouac. Interessado, Kerouac passava as tardes em bibliotecas, e por força do seu catolicismo, se voltou para o ramo mais conservador do budismo, o Mahayana, usando como lema a primeira verdade de Sakyamuni (Buda Sakyamuni, a quem o budismo foi revelado em 500 a.C.): “Toda vida é sofrimento”. O próprio Kerouac dizia ser um budista sério, e sua maior queixa é que o Zen se concentra menos na bondade do que em confundir o intelecto para fazê-lo perceber que todas as coisas são ilusões. (MUGGIATI, 1984)
A busca dos beats pela iluminação espiritual caminha ao lado de uma paixão mais terrena: a revolução das mochilas. Em sua peregrinação, os beats buscavam a visão da América ao longo de caminhos, estradas e trilhas. Garotos inquietos, intelectuais avessos aos escritórios e gabinetes, com “toda aquela terra crua e rude se esparramando numa única, inacreditável e elevada vastidão até a costa Oeste, e toda aquela estrada seguindo em frente, e todas as pessoas sonhando nessa imensidão enquanto a estrela do entardecer vai caindo e irradiando sua pálida cintilância sobre a pradaria”. (BUENO, 1984)
Os beats buscaram em viagens através da América a resposta para as suas inquietações e dilemas. É fácil imaginar Jack Kerouac como um anjo caído – ele auto entitula-se um bikkhu, um monge budista errante – vagando de Nova Iorque à San Francisco, da Califórnia ao México motivado apenas pela possibilidade de descobrir a verdadeira América. A América das plantações de algodão e de uvas, a América dos sonhos. Gary Snyder é o amigo que incentiva Jack; o incita a procurar a revelação espiritual. Por sua vez, Jack vêm e Gary a imagem de um Buda jovem e vigoroso. Em compensação, Gary apontará Jack como bodisatva, o ser de compaixão e de amor. (BUIN, 2007)
Em 1956 Allen Ginsberg, Jack Kerouac e Gary Snyder realizam uma excursão ao monte Matterhorn, na Califórnia, onde gary pronunciou uma frase profética, muitas vezes repetidas mais tarde:
Tenho a visão de um grande revolução de mochilas, milhares ou até mesmo milhões de jovens americanos vagando por aí com mochilas nas costas, subindo montanhas para rezar, fazendo as crianças rirem e deixando os velhos contentes, deixando as meninas alegres e moças ainda mais alegres, todos esses zen-lunáticos que ficam aí escrevendo poemas que aparecem nas cabeças deles sem razão nenhuma. Jack, entretanto, não foi o mais estradeiro dos beats. Embora tenha empreendido, entre 1947 e 1950, a rota Nova Iorque – San Francisco – Cidade do México, com constantes paradas em Denver, Colorado, não foram muitas as suas aventuras nas estradas. Neal Cassady, filho de “um dos bêbados mais trôpegos da Larimer Street, Denver”, era, segundo Jack, “o cara perfeito para a estrada, já que nasceu na estrada quando seus pais estavam passando por Salt Lake City, em 1926, num calhambeque caindo aos pedaços”. Em suas viagens relatadas no livro On the road, Jack põe Neal como instigador de suas andanças. A primeira viagem de Jack , é para encontrar Neal, em Denver. De fato Neal será o iniciador de vida para Jack. Ele o dirá como agarrá-la, suscitá-la e degustá-la.
Na verdade, Allen Ginsberg figura entre os beats mais inquietos. Sua vida e obra estão repletas de visões a estrada, seus diários narram passagens por todos os continentes do mundo. Haxixe no Marrocos, ópio na Índia, peyote no México, yage no Peru, ácido na Grã-Bretanha e maconha em qualquer lugar. Viajar drogado, ou para experimentar novas drogas também era uma predileção de Willian Burroughs. Embora não se possa chamar-lo de andarilho, Burroughs passou boa parte de seus jovens anos perambulando o mundo, e se sacrificando apenas para experimentar novas drogas. (BUENO, 1984)
Quando os livros dos escritores beats foram lançados na segunda metade da década de 1950, nos Estados Unidos, seus autores encontraram em setores consideráveis da sociedade americana um público hostil. Foram classificados como subliteratura, seus poemas censurados e extremamente criticados nos principais jornais americanos. (ALMEIDA, 2006)
A dúvida quanto à contribuição literária da Geração Beat persiste mesmo 50 anos após seu nascimento. Fenômeno comportamental, ou literário? Conforme Cláudio Willer, autor de Beat e a Tradição Romântica, de 1984, trata-se de uma falsa questão. Ela consiste na divisão entre arte e vida, e é exatamente a divisão que Allen Ginsberg, Lawrence Ferlinghetti, Jack Kerouac, William Burroughs e Gregory Corso tentaram ultrapassar. Encontramos, em suas obras, textos sobre o que eles estavam vivendo. Suas vidas foram coerentes com suas idéias, suas visões de mundo e suas concepções literárias. A crítica acadêmica e conservadora não compreendia como, apesar da admissão explícita de uso de drogas, do homossexualismo, das transgressões de comportamento, a errância aventuresca, a prosódia baseada na fala popular e o antiacademismo, tivessem dado certo. Conciliaram o maldito e o olímpico, produzindo imediatamente uma massiva influência literária e comportamental. É sob este aspecto que a Geração Beat se constitui de um fato inteiramente novo na evolução da literatura. Conforme Alain Jouffroy (1926-) destaca, em seu prefácio para a primeira antologia francesa da Geração Beat, nunca havia ocorrido algo assim: autores novos, em suas primeiras publicações, atingirem tiragens enormes. (WILLER, 1984)
Soa estranho, dentro da tradição literária americana, a preocupação com o comportamento e a crítica moralista. Escritores marginais, boêmios, e pouco usuais, como F. Scott Fitzgerald, Jack London e Ernest Hemingway, foram inovadores literários, e também deixaram ricas biografias que se somam a suas obras. No entanto, não há movimentos organizados de vanguarda na primeira metade do século XX, nos Estados Unidos. Enquanto na Europa surgiu o Futurismo, na Itália e na Rússia, o Dadaísmo e o Surrealismo, nos Estados Unidos não houve nada semelhante. Talvez o que possa chegar mais perto é o Imagismo de Ezra Pound e Amy Lowell, mas se comparadas aos demais movimentos da época, fica claro e definido o seu caráter conservador e tradicionalista. Até os anos 50, a literatura americana é uma literatura de indivíduos, não de movimentos. Outra característica é o lugar da universidade na vida cultural dos EUA. Ela tinha um peso imenso não só como instituição de ensino e pesquisa, mas também de produção cultural.
É dentro desse quadro que a Geração Beat inicia um rompimento com a cultura de massa. O impacto e ascensão dos beats podem ser explicados pelo atraso norte-americano na questão de movimentos vanguardistas, e pela presença marcante de um modelo literário conservador. É desnecessário lembrar que a Geração Beat nasce em paralelo ao macarthismo e à perseguição de intelectuais por motivos ideológicos. (WILLER, 1984)
No final da década de 1950, o debate em torno da Geração Beat, nos Estados Unidos, era profundamente polêmico. A discussão misturava a emergente cultura juvenil com o debate literário. Entre 1957 e 1958 os questionamentos acerca da Geração Beat girava principalmente no significado do termo beat, e quem participava dela. Quem cunhou a expressão foi John Clellon Holmes, em 16 de novembro de 1952 ao publicar um texto intitulado “This is the Beat Generation”, no New York Times.
Ao escrever o artigo, Holmes não está definindo apenas uma parcela da juventude, muito menos anunciando uma vanguarda literária. Sua intenção é maior. A Geração Beat incluiria não apenas o hipster, que ouvia jazz e vivia em um submundo com clara característica Existencialista negando o American Way of Life, mas inclusive o jovem que estava conformado com seu papel de “engrenagem em uma grande corporação”. Seria uma geração de extremos. Conforme o próprio Holmes em seu artigo, a origem da palavra beat é obscura, mas seu significado claro.
Muito além de cansaço, implica o sentimento de ter sido usado, de estar desgastado. Envolve uma pureza de mente, e finalmente da alma; um sentimento de ser reduzido aos fundamentos da consciência. Resumindo, significa ser facilmente forçado à sua própria essência. Um homem é beat quando ele vai falido arriscar todos os seus recursos em um só número; e a geração de jovens tem feito isso continuamente desde cedo. (HOLMES – apud ALMEIDA, 2006, p. 06)Desse modo, o termo beat é constituído de duplo sentido, onde ao mesmo tempo em que implica ser objeto passivo de uma ação danificadora, o termo também demonstra a capacidade de acreditar em algo. Mesmo que o homem beat tenha sido usado, e reduzido aos fundamentos da própria alma, ainda tem a capacidade de apostar todos os seus recursos em um só número.
Para o jazz, o termo beat tem o significado negativo de se sentir abatido, mas também está ligado à batida instrumental. Holmes se apropria adequadamente do termo para seu discurso sobre os jovens. Pois o que une esses jovens como uma geração, o que fazem deles beats, é também o duplo movimento de não apenas considerar o sistema de valores da sociedade americana, mas de buscar seus próprios valores e seus próprios ideais. O conceito de Geração Beat nasce antes como um “espírito do tempo”, o sentimento dos jovens que questionam os valores da sociedade americana, do que como movimento literário. No entanto Jack Kerouac, no artigo Origins of the Beat Generation, de 1959, nega seu sentido transformador através de busca de ideais, como prega John Clellon Holmes. Jack enfatiza o seu sentido religioso, e que beat é o radical que compõe beatitude e beatífico. (ALMEIDA, 2006)
Originalmente a palavra beat significa pobre, derrotado, endividado, triste, dormindo nos metrôs. Agora a palavra existe oficialmente, ela está se expandindo para incluir pessoas que não dormem nos metrôs, mas possuem um gesticular novo, ou atitude, que eu só consigo descrever com um novo costume. Geração Beat simplesmente se o tornou slogan ou rótulo para a revolução dos modos da América. Beat significa beatitude, e não um sentimento de fracasso. Jack kerouac inclui a Geração Beat, qualquer pessoa entre 15 e 55 anos que se interessa por tudo. Não são apenas boêmios, a Geração Beat é basicamente uma geração religiosa. (KEROUAC, 1958)
FLOWER POWERExiste uma linearidade em todas as revoluções culturais. Assim como a Geração Beat procedeu à Geração Perdida, da década de 1920, a Geração Hippie é o caminho natural dos Beats. Os hippies não apenas sofreram influência dos beats, mas apropriaram-se de sua religião e seu amor pela vida, o gosto pela viagem e o desapego ao American Way of Life, além do sentimento de desolação, por causa da guerra do Vietnã. Nesse momento o temor da II Guerra Mundial (1939-1945) não mais persiste, mas o medo da Guerra Fria, onde a insanidade de poucos políticos poderia pôr fim ao mundo com suas bombas nucleares, e a Guerra do Vietnã (1959-1975) está vivo no imaginário dos jovens. Oriundos da classe média americana, os hippies eram os filhos mimados de uma sociedade ascendente. Enquanto nos anos 50 as pessoas partiam atrás de novas informações, nos anos 60 uma imensa onda de novas idéias foi aclamada pelos meios de comunicação. Computadores, implantes mecânicos, transplantes de órgãos e tecnologia espacial coexistiam pacificamente com o retorno das ciências ocultistas, a astronomia, as artes divinatórias, a bruxaria e as religiões orientais. Deixe as máquinas e os computadores fazerem o trabalho pesado e vamos viver de amor, eles diziam. Iniciava-se a Era das Viagens. Em busca de drogas artificiais, e do nirvana prometido pelos gurus, toda uma geração caiu na estrada. Não mais em vagões de trens, ou em caçambas de caminhões, como na Geração Beat, mas em vôos ou em navios com destino à Índia e ao Katmandu, no Nepal. Nascia o Zen instantâneo, que era distribuído em forma de pó, ou em pílulas. (MUGGIATI, 1984)
O inconformismo e a busca individual de uma identidade se transformaram em um movimento de massas. Drogas e rebelião eram tudo o que o jovem queria. Contradições eram devidamente identificadas, e novas formas de conformismo foram produzidas. As pessoas sentiam que estava à mão uma grande libertação, para o indivíduo e para a sociedade. Alguns beats, como Allen Ginsberg e Neal Cassady também embarcaram nos novos tempos. Ginsberg trocou a filosofia Zen dos anos 50 pelo misticismo indiano, e Cassady foi motorista do ônibus dos Merry Pranksters, até ser encontrado morto, em 1968 à margem de uma ferrovia no México. Novas filosofias foram concebidas, os sistemas de crenças e as mentes das pessoas foram expandidas. Manifestantes foram alvos de tiros, e extremistas políticos levaram seus movimentos ao suicídio.
A década de 1960 inicia com a mudança na presidência dos Estados Unidos, quando John F. Kennedy (1917-1963) substitui o general Eisenhower (1890-1969). O carisma de Kennedy, sua dinâmica e aparência jovial, além de sua amizade com artistas undergrounds e boêmios contribuíram para criar a sensação de que ele era um pouco hipster. Kennedy era uma espécie de presidente sexo-e-drogas. Enquanto suas aventuras sexuais eram conhecidas publicamente, sua história com drogas é mais misteriosa. Injeções de metanfetamina e B12 aplicadas por Max Jacobson, o Dr. Feelgood, e maconha na Casa Branca com Mary Pinchot Meyer (1920-1964) demonstram que o presidente Kennedy era um homem de estado alterado. Sintonizado com a nascente geração de jovens idealistas, Kennedy era partidário ao movimento pelos direitos civis. Um pouco antes de seu assassinato em 1963, Kennedy mudou sua postura de confronto com a união Soviética. Defendeu o desarmamento e a negociação; também chegou a sugerir, em um discurso de junho de 1963 que: “Se não podemos dar um fim a nossas diferenças, pelo menos podemos ajudar a fazer do mundo um lugar seguro para a diversidade. Pois, em última instância, nossa semelhança mais básica é que todos habitamos esse pequeno planeta. Todos respiramos esse mesmo ar. Todos acalentamos o futuro de nossas crianças. E todos somos mortais”. (KENNEDY, apud GOFFMAN; JOY, 2007, p. 274)
Enquanto a imagem de Kennedy animava os primeiros anos da década de 1960, dois outros acontecimentos representaram o verdadeiro início de uma revolução contracultural: uma nova política de esquerda pós-comunista, adotada pelos jovens, e as experiências com drogas psicoativas.
Nos anos 1960, muitos ex-marxistas se filiaram ao liberalismo anticomunista, e com a eleição de Kennedy, eles estavam perto do poder real. Mesmo que elementos mais conservadores estivessem nos escalões mais altos do governo, muitos liberais tinham posições inferiores, e programas contra a pobreza, maior apoio federal aos direitos civis de afro-descendentes e até mesmo acordos de desarmamento nuclear, estavam na mesa. Em 1960, uma organização universitária de esquerda grupo sustentado pela sindical League for Industrial Democracy, mudou seu nome de Student League for Industrial Democracy para Students for a Democracy Society. Uma nova geração estava assumindo o controle da organização. A mudança do nome foi uma afirmação de independência, eles na sentiam culpa ou desilusão por Stalin , aquela era a história de seus pais. Quando crianças, eles haviam passado pelo macarthismo, mas afinal, eles eram crianças. Seus temores eram muito mais marcados pela presença das bombas atômicas e de hidrogênio do que pela perseguição política dos anos 1940 e 1950. E em algum lugar dos anos 1950, estavam os beats, viajando e fazendo sexo enquanto seus pais trabalhavam das nove às cinco.
Universitários da época estavam mergulhados em tendências filosóficas existencialistas. Sua mensagem era que um indivíduo é responsável por sua própria vida, nem a sociedade, nem o governo farão alguma coisa por você, e é melhor aproveitá-la agora, pois depois não há mais nada. É válido lembrar que os membros dessa nova esquerda eram majoritariamente brancos, e escolheram a luta pelos direitos civis como forma de expressar seu compromisso existencialista, e desse modo se alinhavam com outros grupos, como o Congresso de Igualdade Racial e o Comitê de Coordenação Não-Violenta Estudantil. Ir de carro ou de ônibus para o Sul dos Estados Unidos para desafiar a segregação racial era sem dúvida a experiência de vida autêntica do período.
De volta às universidades, os estudantes radicais estavam se identificando com o clima de revolta e com a liberdade sexual. Foram adotados algumas características beats, seus cabelos eram um pouco mais compridos que os dos outros, e em alguns lugares os baseados de maconha se tornaram parte dos hábitos da esquerda.
Em 1962, a mando da CIA , a Universidade de Harvard demitiu Richard Alpert (1931-) e Timothy Leary (1920-1996), dando involuntariamente publicidade e uma aura de rebeldia às drogas psicoativas e aos ex-professores, despertando assim um interesse em estudantes universitários de todo os Estados Unidos. Aos 39 anos, em 1960, o professor universitário Timothy Leary tirou férias com a família e amigos no México, e seguindo o conselho de um colega, experimentou alguns cogumelos psilicibianos . O resultado o deixou impressionado, e mais tarde escreveu sobre a experiência: “Foi (...) sem dúvida alguma a maior experiência religiosa da minha vida. Eu descobri a beleza, a revelação, a sensualidade, a história celular do passado, Deus e o diabo – tudo estava dentro do meu corpo, do lado de fora da minha mente”. (LEARY, apud GOFFMAN; JOY, 2007, p. 275)
Naquele mesmo ano, Leary retornou a Harvard determinado a conduzir experiências sobre o potencial psicoterapêutico da substância psilocibina, e criou um projeto de pesquisa, conseguindo um suprimento legalizado de comprimidos de psilocibina sintética. Muitos colegas facilitaram o seu trabalho com pesquisas já realizadas com drogas psicodélicas, e escritos de intelectuais que a experimentaram, como psicólogo e filósofo William James (1842-1910) e o escritor Aldous Huxley (1894-1963) . (GOFFMAN; JOY, 2007)
Antes de Leary, porém, inúmeros cientistas, terapeutas e espiões da CIA haviam feito experiências com alguns compostos psicoativos, ao longo da década de 1950, com objetivos distintos. Alguns pesquisadores acreditavam que as drogas criavam uma psicose temporária, o que lhes dava a oportunidade de estudar esses estados patológicos. Outro grupo de cientistas compreendiam que as drogas poderiam produzir uma experiência positiva e espiritual, com resultados terapêuticos. Já a CIA, pensava que as drogas podiam ser usadas para vários objetivos defensivos, como o interrogatório de prisioneiros e a incapacitação de tropas inimigas e populações civis. No entanto eles chegaram à conclusão que os efeitos das drogas eram imprevisíveis demais para serem úteis. (CARVALHO, 2002)
Um dos beats que se ofereceu de cobaia para o projeto de Leary em Harvard, foi Allen Ginsberg. Embora já houvesse se drogado mescalina , peyote e LSD , a experiência dirigida pelo professor Leary foi uma espécie de “visão messiânica” para Ginsberg. Estimulado pela psilocibina, Allen Ginsberg levantou o dedo no ar e sacudiu: “Eu sou o Messias”. O entusiasmo de Ginsberg em converter as pessoas à sabedoria que havia encontrado na substância, despertou no Dr. Leary um entusiasmo sem precedentes no mundo ocidental. Ginsberg barbudo, pederasta e judeu, um poeta beat, e o Dr. Leary sobriamente vestido, hétero e adepto de padrões de comportamento humano “normais”, fizeram um pacto para mudar o mundo. Seu plano inicial era conduzir importantes escritores, artistas e músicos à experimentação da psilocibina, e estes, supostamente, deveriam se entusiasmar e espalhar a notícia. Os resultados, no entanto foram decepcionantes. Grande parte dos intelectuais e artistas que experimentaram a droga a consideraram uma experiência válida, mas eles eram céticos quanto aos seus efeitos e às suas perspectivas. Alguns gostaram um pouco da droga, outros detestaram. Alguns gostaram muito, mas ninguém se juntou à cruzada. (GOFFMAN; JOY, 2007).
Leary continuou seu projeto. Além de suas experiências com a psilocibina, Harvard era um centro de pesquisas de alucinógenos da CIA, e logo ela decidiu “banir” o Dr. Leary e o Dr. Alpert do quadro docente da universidade. Em uma reunião pública, a administração de Harvard pos o projeto da psilocibina sob séria vigilância. Passaram-se poucos meses para que Harvard encontra-se desculpas para demitir Leary e Alpert. Com publicidade gratuita, os ex-professores podiam falar à vontade sobre sua pesquisa, o que eles fizeram com certa dose de inteligência e irresponsável naturalidade. Nesse momento eles tinham um inimigo, as instituições detentoras do poder nos EUA. (GOFFMAN; JOY, 2007).
Enquanto as idéias militaristas da Guerra Fria mantinham-se firmes no subconsciente de grande parte dos americanos no início da década de 1960, as soturnas tendências contraculturais antiautoritárias deixadas pela década de 1950 começaram a caminha por um caminho mais alegre e absurdo. Na pintura, o expressionismo abstrato deu lugar à um comportamento tresloucado, mais elegante e irônico. E Bob Dylan, brilhante autor de canções de protesto, se comportava como um irritante adolescente, atacando repórteres e outros adultos por serem sérios demais. A revolução cultural que tinha começado nos anos 1950 continuava o seu caminho, ganhando confiança e força. O jazz, antes aclamado como essencial, nesse ponto dá lugar ao rock e ao espírito rebelde de Elvis Presley (1935-1977), Jerry Lee Lewis (1935 -), Chuck Berry (1926 -), Little Richard (1932 -) e Fats Domino (1928 -). Na Inglaterra alguns rapazes, na sua maioria oriunda das classes operárias, estavam vivendo nos escombros de uma sociedade decadente, com forte distinção de classes. Consolados pelos antigos compactos de rock americano, os garotos ingleses desenvolveram não só uma música própria, mas também um estilo distinto do resto da Europa. Foi nesse ambiente que no final da década de 1950 surgiram os Beatles e Rolling Stones, os primeiros com um rock frívolo, os segundos com uma espécie de rock enérgico. Em 1964, quando os Beatles estouram nos Estados Unidos, a população adulta parou de se preocupar com os comunistas e passou a temer o cabelo. No decorrer dos anos seguintes, as letras e a música evoluíram num ritmo extraordinário. Ken Kesey (1935-2001) e seus Merry Pranksters certamente foram os primeiros. Em 1964 ele encheu de amigos e de LSD um ônibus com pinturas psicodélicas e saiu pelos Estados Unidos para drogar as pessoas e ver como elas se portavam. Esses novos hipsters estavam falando de amor, comunhão e êxtase. Essa mistura de idéias foi acelerada pela recém despertada consciência-psicodélica, auxiliada sobretudo à grande produção de LSD. No seu encalço, Chet Helms (1942-2005) e Janis Joplin (1943-1970) criaram a casa de rock Family Dog. Em agosto de 1969, o festival de Woodstock foi realizado em uma fazenda em Bethel, Nova Iorque. Embora tenha sido projetado para 50 000 pessoas, mais de 400 mil compareceram, a maioria das quais não pagaram o ingresso. Participaram do evento artista ligados a diversos estilos musicais que de alguma forma se relacionavam com as propostas do movimento hippie: o folk, com seu pacifismo e sua contundente crítica social, o rock, com sua contestação ao conservadorismo dos valores tradicionais, o blues, com sua melancolia que havia décadas já mostrava as contradições da sociedade norte-americana, a cítara de Ravi Shankar, representando a presença marcante da influência oriental na contracultura, entre outros.
Todo o evento provocou uma grande balbúrdia, com rodovias congestionadas e Bethel sendo ocasionalmente considerada "área de calamidade pública". Grateful Dead, Pink Floyd, Jimi Hendrix, Cream e Santana foram alguns dos grandes revolucionários na música nos anos 1960. (GOFFMAN; JOY, 2007).
Em 1966 Kensey e seus Pranksters estavam realizando “encontros” públicos de LSD, também chamados de “Testes de Ácidos”. Eram acontecimentos abertos a todos, onde grandes jarros de refrigerantes eram enchidos com doses cavalares de LSD, e barulhos perturbadores e música eram tocados em volumes exagerados. Esse carnaval de jovens selvagens estava começando a preocupar as autoridades dos EUA, mas como o LSD ainda era legal, não havia muito que fazer. Foi nesse ponto que a imprensa e os políticos, que estavam em alerta desde a demissão de Leary, se tornaram claramente apocalípticos e difamadores. Foram realizadas três audiências para atacar o LSD, todas a mando da CIA. Embora Timothy Leary e Allen Ginsberg tivessem participado, ao lado de outros defensores dos psicoativos, e testemunhado oferecendo idéias sensatas e conciliadoras, por todo o país começaram a aprovar leis proibindo o LSD, atacando desse modo o que Leary chamava de a quinta liberdade, onde o ser humano tem o direito de controlar seus próprios estados de consciência, e o Estado não pode impedir as pessoas de alcançar qualquer estado mental. Mas a década de 1960 ainda reservava algo para os jovens agitadores. Em 14 de janeiro de 1967, em São Francisco, Califórnia, uma convocação ecoou em uma grande cadeia de rádio: “amanhã, grande reunião das tribos. Tragam sininhos, plumas flores, tambores, colares, flautas, crianças, qualquer coisa, você mesmo”. No dia seguinte eles chegaram, dezenas de jovens, embora menos que os 100 mil esperados apareceram. Barbudos, floridos, as mulheres oferecendo flores, o cheiro de incenso no ar, caras pintadas, viagens de ácido, etc. Aparentemente a polícia não com pareceu, mas eles sabiam que estavam sendo vigiados. À noite Allen Ginsberg, de pé para a nação paz e amor, entoou um cântico religioso hindu, acompanhado pela multidão que tocava cítaras e tambores. A explosão hippie aconteceu naquela noite, estava fundado o movimento. (DIAS, 2003)
O episódio inaugurou a temporada flower power californiana, conhecida como o “Verão do Amor” e transformou em confusão o ambiente calmo que era partilhado pela comunidade relativamente pequena de comedores de ácido. Não havia comida, nem alojamentos suficientes para todos os imigrantes, e os filósofos de rua não podiam oferecer nada além de conforto e conselhos. Delinqüentes juvenis, psicóticos, esquizofrênicos, toda a sorte de jovens perdidos estava solta nas ruas de São Francisco. Os criminosos chegaram com drogas mais pesadas, como heroína e metanfetamina, e os jovens de olhos brilhantes logo foram suplantados por jovens de olhares vazios e perdidos. (DIAS, 2003)
Em Oakland, Califórnia, em 1966, Huey Newton (1942-1989) e Bob Seale (1936 -), dois estudantes negros, influenciados pelas idéias políticas do movimento Black Power , criaram o Partido Pantera Negra para Defesa Pessoal. Naquela época, a comunidade negra de Oakland era controlada por uma força policial inteiramente branca; o racismo, a brutalidade e o excesso de autoritarismo eram comuns. Newton, tendo estudado minuciosamente a Declaração de Direitos e a Constituição dos Estados Unidos, concluiu que os afro-americanos podiam usar armas e policiar a polícia. Assim, junto com alguns outros membros armados de rifles, saíram atrás da polícia de Oakland para garantir que ela estava fazendo seu trabalho adequadamente. Logicamente os policiais não gostaram da atenção. Enquanto os Panteras cresciam e se tornavam mais fortes, impondo medo tanto em brancos como negros, a nova esquerda e inclusive segmentos hippies se aproximaram deles. Os Panteras queriam trabalhar com o movimento contra a Guerra do Vietnã, assim como a nova esquerda e os hippies. No primeiro ano da era hippie, 1967, seu estilo de vida anarquista estava no auge, e a nova esquerda estava lentamente abandonando a luta política; não haviam informações concretas sobre a guerra, apenas sabiam que dos aproximadamente 500 mil soldados americanos que estavam no Vietnã, morriam aproximadamente 500 a cada mês. Não sabiam com exatidão quantos vietnamitas haviam sido mortos, mas era cada vez mais claro que os soldados americanos e do exército sul-vietnamita estavam atacando a população civil. No entanto, o outono de 1967 trouxe um alento e esperança ao movimento contra a guerra.
Jerry Rubin (1938-1994), influente ativista social, organizou uma manifestação contra a guerra, no Pentágono e usou de um peculiar argumento para atrair os hippies: por ser um edifício de cinco faces, apontando para o leste, Rubin alegou que o prédio era um símbolo mágico do mal, e que eles iriam “fazer levitar” e “exorcizar os espíritos malévolos”. O prédio se ergueria 15 centímetros, os demônios fugiriam e a guerra acabaria. Compareceram cerca de 75 mil ativistas.
Houve um grande florescimento de criatividade, os jovens estavam em constantes mudanças, experimentando novas drogas, novas experiências com o livre pensamento e novos estados de alteração da mente. Esses jovens expandiram as fronteiras pelas quais os indivíduos buscavam liberdade, tanto de forma interna como externa.